domingo, 10 de fevereiro de 2008

A queda de um anjo

Domingo, 28 de maio de 2005. 22h18min. Estou em meu quarto, tentando corrigir a dissertação de mestrado de um aluno da USP de Ribeirão Preto. Será a primeira vez que serei membro de uma banca examinadora... Há muitas correções a serem feitas. Aliás, eu tenho milhões de coisas para fazer, e muitas delas tomam minha atenção neste momento. É verdade, concentrar-me está sendo uma tarefa muito difícil. Afinal, a contragosto, deixei a Débora em casa mais cedo por causa das coisas que tenho que fazer, Ainda bem que ela é compreensiva... A mamãe e o papai estão lá dentro, dormindo. Estou preocupado com o papai, pois ele está há semanas com uma tosse que não quer curar. É uma tosse seca. A mamãe me contou que ele arregala os olhos quando começa a tossir, de tal forma que se tem a impressão que ele vai perder o fôlego. Quando cheguei em casa, há pouco mais de uma hora, encontrei os dois no quarto. A mamãe estava sentada, com os cotovelos nos joelhos, olhando para o chão. Parecia desanimada. O papai estava deitado de lado, com um olhar triste e distante. “O que foi, mamãe?”, perguntei, com certo ar de preocupação. “Seu pai está com medo de dormir e se sufocar quando começar a tossir”, responde ela, aparentemente exausta e desanimada. Sem ter muito que fazer (pelo menos nada que possa resolver esta situação), eu vim para o meu quarto tentar corrigir a dissertação. Pra falar a verdade, com tanta coisa pra pensar, não está sendo nada fácil... Eis que, de súbito, ouço um enorme barulho. Tiro os olhos do monitor por um instante. “Deve ter caído alguma coisa ali na oficina”, penso, lembrando-me que as coisas sempre caem na oficina do tio “Bixim”, aqui no terreno ao lado. Quando penso em tentar concentrar-me na correção da dissertação, ouço um grito de horror da mamãe, vindo lá de dentro de casa: “Filho do céu! Seu pai caiu da cama!” Como que por instinto, eu abro a porta do quarto e destranco a da cozinha e corro em direção ao quarto. Lá, no chão do quarto, próximo à parede, está o papai, sentado. O criado-mudo está encostado à parede, a cama está fora do lugar. Minha primeira reação é perguntar se ele melhorou. Sua resposta demonstra que ele está meio sonolento, ou talvez fora de si. Penso, então, na possibilidade dele ter batido a cabeça no criado. “Papai, o senhor se machucou?”. Como resposta, ouço apenas alguns grunhidos de sono, idênticos à resposta anterior. Preocupado em vê-lo no chão, penso então em erguê-lo e colocá-lo na cama. Abraço-o pelas axilas e tento levantá-lo. Imediatamente sinto uma fisgada na coluna. É, eu sei que não tenho uma coluna saudável para um esforço hercúleo com este, nem tampouco sou tão forte para erguer os 118kg de meu pai, mas nessas horas de apuros a gente tem que tentar. Aos poucos, ele vai se apoiando e, após muito esforço, consegui fazer com que ele se sente na cama. Com um dos cotovelos apoiados sobre uma das coxa, ele leva uma das mãos à testa.. “Papai, o que o senhor está sentindo?”, insisto. Sua resposta vem na forma de lágrimas. Caramba, eu não me lembro de ter visto o meu pai chorando antes! As lágrimas vão escorrendo. Curiosamente, eu acho que sei por que ele estão tão triste... Olho para ele. Aqui, diante de mim, está o meu pai. Sentado na cama, diante de meus olhos, eis o homem que me tornou o que sou hoje, aquele que moldou minha personalidade. Um homem de 54 anos, de cabelos grisalhos, que já passou poucas e boas para criar a mim e à minha irmã. Um homem trabalhador, que nunca teve preguiça nem medo de serviço pesado. Um homem honesto e, acima de tudo, honrado. Um homem que sempre deu a vida por nós. Sento-me ao seu lado e o abraço. Também estou chorando. Eu compartilho da dor dele. Nós dois sabemos que os anos se passam e levam consigo nossa saúde e nossa força. Causa muito sofrimento ao meu pai enxergar que aquele homem que levantava 60 kg com o braço esquerdo, sorrindo, agora mal consegue parar de pé... E a mim também...Abraçado a ele, eu também choro. Um enorme sentimento de incapacidade me abate neste momento.
Tentando segurar o pranto, ouço a mamãe dizer para eu ir me deitar, que o papai precisa tentar dormir para descansar. Enxugando as lágrimas, volto então para o meu quarto. Lá encontro a maldita dissertação, aguardando para ser corrigida. Como que em uma atitude de revolta, arranco o cabo da tomada e me deito. Por alguns segundos, fico olhando para o céu. Penso no quanto somos pequenos e frágeis. E choro. Choro aos soluços. Apago a luz. Fecho os olhos, mas o sono não vem. Talvez o sono venha após algum tempo. Agora, mais do que nunca, eu desejo que o tempo passe.

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