domingo, 10 de fevereiro de 2008

A dor de um pai que perde seu filho

Sábado, 29 de julho de 2006. 15h26min. Acabo de entrar em meu quarto. Há 50 min atrás eu estava em Franca, ministrando aulas na pós-graduação. Estou exausto. Caminho com o corpo projetado à frente, os ombros encolhidos. Preciso dormir. Sento na cama, tiro os sapatos. Neste momento, o papai aparece à porta do meu pequeno quarto. Bate uma mão contra a outra, esfrega as duas no rosto, passa os dedos entre os cabelos. “Filho do céu! O papai viu um carro que é perfeito pra você!”. Eu sei ao que ele se refere. A mamãe havia me prevenido do entusiasmo dele com relação a um carro que ele viu em uma revendedora de veículos aqui da cidade. Mesmo estando cansado, o entusiasmo do papai faz surgir um riso tímido, que não chega a expor meus dentes. “Papai, o senhor sabe que eu estou construindo a minha casa, e que esta é agora a minha grande prioridade. Não posso trocar o carro, não”, esclareço-lhe. “Filho, se você ver, você vai babar! Vamos lá ver o carro. O papai te leva lá, vamos!” Não tenho forças para isso. “Papai, eu vou dormir. Preciso descansar. Depois a gente vai lá, ta?” Meio que contrariado, ele vira as costas e se dirige à sala, onde passa boa parte do tempo assistindo televisão. Sem conseguir organizar meus pensamentos e sem dar muita importância ao que acabou de acontecer, eu forro o chão com um lençol e me deito, com as pernas para cima. Tenho dormido nesta posição por causa das dores na coluna. Por incrível que pareça, tenho observado que as dores estão desaparecendo aos poucos. Estendido pelo chão, eu fecho os olhos. Acordarei daqui a uns 40 min. 16h50min. Ao ouvir o barulho dos pingos da chuva contra as telhas, decidi dormir um pouco mais do que o previsto. Afinal, com chuva não vai haver o futebol das tardes de sábado. Ou será que vai? Com o ânimo renovado, projeto o tronco à frente e, após um rápido flexionar de joelhos, posiciono-me de pé. Calço os chinelos e dirijo-me ao portão. “Mamãe, eu vou lá ver se a turma vai jogar futebol, tá?”. Ao ter como resposta um simples movimento de pescoço, dirijo-me ao portão. Como de costume, o atrito do trinco com o portão devido à falta de graxa alerta que estou saindo. “Filho! Onde você vai?”, ouço, já na rua, a caminho da academia, o papai gritando por mim, lá de dentro de casa.... Mesmo com a quadra molhada, lá estão os colegas. Correm como se não houvesse nenhuma poça d’água dentro da quadra. “Tonhão, vai lá calçar um tênis!” Ao ver a animação deles, dou meia volta e retorno para casa. Minha presença é novamente acusada pelo ranger do trinco do portão. Lá vem o papai. “Filho, vamos lá ver o carro. Ele é do jeito que você sonhou!”, diz ele, com o entusiasmo aparentemente renovado. “Papai, mas eu não posso comprar ele agora. O senhor sabe qual é a minha situação. Estou gastando muito com a construção da casa. Nem o senhor eu estou podendo ajudar, dirá então trocar de carro...” “Mas eu não quero que você compre. É só pra ver. Filho, você precisa ver que carro ‘ajeitado’!” Enquanto ouço ele falar, abro a sacola onde ficam o tênis, a tornozeleira e a caneleira. A expressão do papai então endurece. “Aonde você vai?”, pergunta, como se já soubesse a resposta. “Vou jogar bola”, respondo. Sentado à cadeira, ele, que inicialmente estava sentado à ponta da cadeira, acomoda as costas e olha para o céu, com um olhar perdido. “É isso que um pai ganha. Eu te criei com tanto amor e você não tem nem um minuto pra mim. Quando eu era mais novo, quando a situação financeira aqui em casa era melhor, quando eu ainda mandava em vocês, aí sim você e sua irmã ligavam pra mim. Agora que não precisam mais de mim, meu destino é ficar jogado às traças. Isso é muito duro para um pai. Mas pode deixar. Você ainda vai ter um filho e sentir a mesma coisa que eu. Aí você vai ver o quanto é doloroso e vai se lembrar de seu velho pai”. Tentando demonstrar naturalidade, eu me dirijo até o portão. “Tchau, papai! Tchau, mamãe!”. Sigo então em direção à academia. Meus passos, entretanto, são curtos. Caminho olhando para o chão, tentando controlar a respiração. As palavras do papai transpassaram-me o coração. Sinto um nó na garganta. Olho então para o céu e ensaio uma pequena corrida até a academia. Está difícil conter as lágrimas... Neste momento, eu me sinto o pior dos seres humanos, o pior dos filhos da face da terra. Pior que isso: eu me sinto o mais egoísta. Paro, então, por um instante. Penso em voltar para trás, mas o meu egoísmo abafa qualquer tentativa de voltar atrás. Talvez eu esteja empolgado e iludido com o meu desempenho no sábado passado... Entro então em quadra. Os passes não saem, os chutes não vão em direção ao gol, os dribles são facilmente desarmados. “Tonhão, você ta feio hoje, hein?”, grita alguém, aludindo-se ao meu rendimento pífio... Após 50 min, eu volto para casa tão derrotado quanto a deixei. Na sala, o papai está sentado no sofá, apoiado à almofada. “Agora é tarde demais pra ver o carro, você não acha?” Tentando segurar as lágrimas, eu olho dentro dos olhos dele. Parecem estar úmidos também. Pego então em sua mão e ficamos nos olhando, sem dizer nada. Não é preciso. 1h21min. As palavras de meu pai ecoam como um sino em memória. “Um dia você terá um filho e sentir a mesma coisa que eu.” Perder os filhos para o mundo é talvez uma das feridas mais tristes de serem cicatrizadas no coração de um pai. À medida que crescem, passam a ter vidas próprias. Ao assistirem a independência de seus filhos, os pais custam acreditar que o tempo está passando. É difícil e doloroso aceitar que seus bebês estão se tornando homens. Egoístas, os filhos não conseguem dedicar um pouco de seu tempo aos seus pais. Suas vidas são, na opinião deles, prioridade. Minutos de atenção dedicados aos pais são, realmente, muito raros. Neste momento, penso no quanto eu preciso ser pai, para deixarmos de ser tão egoísta. E, claro, para sentir e entender esta dor que, certamente, fará brotar a solidão em meu coração e trará à tona as palavras tão tristes de mais um pai que irá perder seu filho para o mundo...

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