domingo, 10 de fevereiro de 2008

À minha grande amiga - parte 2

Outubro de 1999. 9h20min. Não há ninguém que me conheça neste lugar, pelo menos não que eu saiba. Da mesma forma, todos os rostos me surgem pela primeira vez. Sou um desconhecido, todos são desconhecidos para mim. No entanto, tenho a impressão de que alguém acabou de tocar meu ombro e, ao fazê-lo, chamou-me pelo nome. Por uma fração de segundos, sinto vontade rir. “Deve ter sido miragem. Ninguém me conhece neste deserto”. Por via das dúvidas, decido virar-me. Para minha surpresa, há alguém atrás de mim, que ao me ver girando o pescoço, puxa um outro tamborete e se coloca sentada à minha frente, próxima à bancada. Aquela mulher magra, de pele branca e cabelos castanhos claros, aparentando uns 28 anos, esboça um sorriso cordial e estende sua mão direita em minha direção. “Muito prazer. Meu nome é Ana Cláudia”. Sem que eu nada perguntasse, aquela então desconhecida começa a explicar-me que é amiga do Wilson e do “Norba”, os professores de graduação que mais me incentivaram a ingressar na pós-graduação. Ela me conta que eles foram colegas de laboratório e, de quebra, narra alguns acontecimentos engraçados envolvendo os dois. Eu rio das coisas engraçadas que ela me conta. Como minhas risadas não são o ponto forte de minha discrição, percebo que as demais pessoas daquele lugar começam a rir do meu jeito e do meu sotaque “caipiras”. “O Wilson me disse que você viria. Conte comigo para o que precisar.” Enfim, há alguém com quem eu possa contar. “Obrigado Ana”. De repente, um lampejo. “Peraí, você é a Aninha?” Ela sorri. “Sim, é assim que o Wilson e os amigos me chamam.” Recordo-me então dos elogios que o Wilson tecia à sua capacidade intelectual, competência e bondade. Levanto as sobrancelhas, demonstrando surpresa. “Muito prazer, Aninha”, digo, oferecendo-lhe a mão novamente. Ela acha engraçado. “Desde já lhe agradeço. Pode ter certeza de que eu vou precisar muuuuito da sua ajuda”. 9h40min. A Ana se levanta do tamborete. “Venha, vou lhe apresentar os seus colegas de laboratório. Fica evidente que ela se dá bem com todos. Vejo, pelo olhar de cada um deles, que a Ana é muito querida. “O nome dele é Miller. Ele é aluno de mestrado do prof. João”, diz a eles minha nova amiga. “Esta é a Ana Cláudia. Para não confundir nós duas, chame-me de Aninha e a ela de Kaká”. Pela estatura da Kaka, dá pra entender porque usaram o diminutivo no apelido “Aninha”. Não, certamente não vou confundir. Rute, Marcos Salvador, Eliane, Elisandra, Andréia, Renatinha, Sakamoto, Cristiane Jordão, Cristiane Grael, Cléber, Fabiana, Augusto. É claro que em um primeiro momento, não conseguirei associar esses nomes a cada uma das pessoas. Mas agora todos sabem meu nome, e eu sei que posso contar com pelo menos uma delas: a “Aninha”. 9h50min. Após ser apresentado aos colegas, chamo a “Aninha” até a minha bancada. Sento em meu tamborete e ofereço-lhe um outro a ela. Ela se senta, curiosa. Pego então o papel em que o professor João havia desenhado todos aqueles esquemas e mostro a ela. “Ana, o prof. João disse-me que é pra eu fazer isso aí. Você sabe o que é? Você pode me ajudar?”. Ela pega o papel, faz uma cara de preocupada, depois balança a cabeça em sinal negativo, sorri e me devolve o papel. "O que você quer dizer com esse sorriso?"
(to be continued...)

À minha grande amiga - parte 1

Outubro de 1999. 8h. O elevador pára no 3º. andar do bloco M da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto. A porta se abre e o metal polido das portas do elevador é substituído por uma enorme parede cinzenta. Dou alguns passos para a esquerda e deixo o velho elevador para trás. À minha frente há um enorme corredor, pouco iluminado. De vez em quando algumas pessoas cruzam-no de um lado para outro. A expectativa que toma conta de mim pode ser comparada à de quem assiste a um filme de suspense (embora eu não tenha, inacreditavelmente, aos 24 anos, jamais entrado em um cinema...). Mas este não é um filme de suspense, e sim de aventura. É hoje, enfim, o dia em que iniciarei a parte experimental do mestrado, e pra falar a verdade, eu não tenho a mínima idéia de nada do que irei fazer nos próximos minutos. 8h20min. Estou na sala do professor João. Enquanto olho os diplomas pendurados pelas paredes e a quantidade enorme de projetos e artigos em cima de sua mesa, ele segue tentando explicar-me quais os procedimentos que deverei seguir para fracionar os extratos que estão sobre a mesa dele. Mas o cheiro de conhecimento daquele lugar deixa-me cego e surdo. Sinto-me um ignorante diante das coisas que ele está explicando, pois não entendo a maioria delas. Limito-me apenas a balançar a cabeça em sinal afirmativo. Ele então larga a caneta sobre a mesa, pega o papel amarelado e o estende até mim. Eu pego o papel nas mãos e tento, em vão, entender o que está escrito ali. Ele projeta seu corpo para trás e o deixa cair sobre o encosto da cadeira reclinável. “Alguma dúvida, Miller?” Claro que não. Pelo menos nenhuma que eu possa esclarecer neste momento. “Então ao trabalho”. Ele se levanta e me pede para segui-lo. 8h45min. Estou parado à porta do laboratório de Química Orgânica da USP. Ao meu lado, o professor João olha de um lado para o outro, com a caixa contendo os extratos em mão. “Venha até aqui, Miller”, diz ele, seguindo em direção a uma bancada. Ele me apresenta então o lugar onde provavelmente passarei minhas próximas noites, e talvez os meus próximos anos. Coloco sobre a bancada o papel contendo as informações que ele me passou e respiro fundo. Quando me viro em direção a ele e tento esboçar alguma reação – sim, eu estou em pânico! – sinto o peso de sua mão cair sobre o meu ombro. “Agora é contigo. Boa sorte!”. Ele se vira e retorna à sua sala. 8h55min. A situação é desesperadora. Preciso desenvolver o meu projeto de mestrado e não tenho a mínima idéia de como começar. Os esquemas que o professor João parecem-me um montem de códigos indecifráveis. Há também alguns palavrões, como “partição”, “decantação”, “cromatografia em camada delgada”. Não sei nem por onde começar. Olho ao redor. Há vários pós-graduandos trabalhando, todos vestindo seus jalecos brancos. São mulheres em sua maioria, e cada uma delas parece mergulhada em seus próprios problemas. Não tenho amizade com nenhuma delas, e pela forma como me ignoram, começo a acreditar que a parte experimental será um desafio tão difícil quanto cumprir os créditos em disciplinas. 9h15min. Após 20min tentando entender o que o professor João deixou registrado naquele papel, um profundo desânimo se abate sobre mim. Começo então a olhar para cada uma daqueles “colegas” – será que posso chamá-los assim? Todos parecem tensos, mergulhados em seus próprios problemas. Será que todos são arrogantes? Afinal, todos eles estão estudando na USP. “Ora, eu também estou!”, diz o meu lado otimista. “É, você está é encrencado!”, rebate o meu lado pessimista. Sento-me então em um pequeno tamborete, e com os dois ombros apoiados sobre a bancada, coloco as duas mãos no rosto, sem saber o que fazer. “Meu Deus, por favor, me ajude! Não sei o que fazer!”. Sinto então uma mão tocar meu ombro e uma voz feminina dizendo: “Você é o Miller, não é?”
(to be continued...)

A dor de um pai que perde seu filho

Sábado, 29 de julho de 2006. 15h26min. Acabo de entrar em meu quarto. Há 50 min atrás eu estava em Franca, ministrando aulas na pós-graduação. Estou exausto. Caminho com o corpo projetado à frente, os ombros encolhidos. Preciso dormir. Sento na cama, tiro os sapatos. Neste momento, o papai aparece à porta do meu pequeno quarto. Bate uma mão contra a outra, esfrega as duas no rosto, passa os dedos entre os cabelos. “Filho do céu! O papai viu um carro que é perfeito pra você!”. Eu sei ao que ele se refere. A mamãe havia me prevenido do entusiasmo dele com relação a um carro que ele viu em uma revendedora de veículos aqui da cidade. Mesmo estando cansado, o entusiasmo do papai faz surgir um riso tímido, que não chega a expor meus dentes. “Papai, o senhor sabe que eu estou construindo a minha casa, e que esta é agora a minha grande prioridade. Não posso trocar o carro, não”, esclareço-lhe. “Filho, se você ver, você vai babar! Vamos lá ver o carro. O papai te leva lá, vamos!” Não tenho forças para isso. “Papai, eu vou dormir. Preciso descansar. Depois a gente vai lá, ta?” Meio que contrariado, ele vira as costas e se dirige à sala, onde passa boa parte do tempo assistindo televisão. Sem conseguir organizar meus pensamentos e sem dar muita importância ao que acabou de acontecer, eu forro o chão com um lençol e me deito, com as pernas para cima. Tenho dormido nesta posição por causa das dores na coluna. Por incrível que pareça, tenho observado que as dores estão desaparecendo aos poucos. Estendido pelo chão, eu fecho os olhos. Acordarei daqui a uns 40 min. 16h50min. Ao ouvir o barulho dos pingos da chuva contra as telhas, decidi dormir um pouco mais do que o previsto. Afinal, com chuva não vai haver o futebol das tardes de sábado. Ou será que vai? Com o ânimo renovado, projeto o tronco à frente e, após um rápido flexionar de joelhos, posiciono-me de pé. Calço os chinelos e dirijo-me ao portão. “Mamãe, eu vou lá ver se a turma vai jogar futebol, tá?”. Ao ter como resposta um simples movimento de pescoço, dirijo-me ao portão. Como de costume, o atrito do trinco com o portão devido à falta de graxa alerta que estou saindo. “Filho! Onde você vai?”, ouço, já na rua, a caminho da academia, o papai gritando por mim, lá de dentro de casa.... Mesmo com a quadra molhada, lá estão os colegas. Correm como se não houvesse nenhuma poça d’água dentro da quadra. “Tonhão, vai lá calçar um tênis!” Ao ver a animação deles, dou meia volta e retorno para casa. Minha presença é novamente acusada pelo ranger do trinco do portão. Lá vem o papai. “Filho, vamos lá ver o carro. Ele é do jeito que você sonhou!”, diz ele, com o entusiasmo aparentemente renovado. “Papai, mas eu não posso comprar ele agora. O senhor sabe qual é a minha situação. Estou gastando muito com a construção da casa. Nem o senhor eu estou podendo ajudar, dirá então trocar de carro...” “Mas eu não quero que você compre. É só pra ver. Filho, você precisa ver que carro ‘ajeitado’!” Enquanto ouço ele falar, abro a sacola onde ficam o tênis, a tornozeleira e a caneleira. A expressão do papai então endurece. “Aonde você vai?”, pergunta, como se já soubesse a resposta. “Vou jogar bola”, respondo. Sentado à cadeira, ele, que inicialmente estava sentado à ponta da cadeira, acomoda as costas e olha para o céu, com um olhar perdido. “É isso que um pai ganha. Eu te criei com tanto amor e você não tem nem um minuto pra mim. Quando eu era mais novo, quando a situação financeira aqui em casa era melhor, quando eu ainda mandava em vocês, aí sim você e sua irmã ligavam pra mim. Agora que não precisam mais de mim, meu destino é ficar jogado às traças. Isso é muito duro para um pai. Mas pode deixar. Você ainda vai ter um filho e sentir a mesma coisa que eu. Aí você vai ver o quanto é doloroso e vai se lembrar de seu velho pai”. Tentando demonstrar naturalidade, eu me dirijo até o portão. “Tchau, papai! Tchau, mamãe!”. Sigo então em direção à academia. Meus passos, entretanto, são curtos. Caminho olhando para o chão, tentando controlar a respiração. As palavras do papai transpassaram-me o coração. Sinto um nó na garganta. Olho então para o céu e ensaio uma pequena corrida até a academia. Está difícil conter as lágrimas... Neste momento, eu me sinto o pior dos seres humanos, o pior dos filhos da face da terra. Pior que isso: eu me sinto o mais egoísta. Paro, então, por um instante. Penso em voltar para trás, mas o meu egoísmo abafa qualquer tentativa de voltar atrás. Talvez eu esteja empolgado e iludido com o meu desempenho no sábado passado... Entro então em quadra. Os passes não saem, os chutes não vão em direção ao gol, os dribles são facilmente desarmados. “Tonhão, você ta feio hoje, hein?”, grita alguém, aludindo-se ao meu rendimento pífio... Após 50 min, eu volto para casa tão derrotado quanto a deixei. Na sala, o papai está sentado no sofá, apoiado à almofada. “Agora é tarde demais pra ver o carro, você não acha?” Tentando segurar as lágrimas, eu olho dentro dos olhos dele. Parecem estar úmidos também. Pego então em sua mão e ficamos nos olhando, sem dizer nada. Não é preciso. 1h21min. As palavras de meu pai ecoam como um sino em memória. “Um dia você terá um filho e sentir a mesma coisa que eu.” Perder os filhos para o mundo é talvez uma das feridas mais tristes de serem cicatrizadas no coração de um pai. À medida que crescem, passam a ter vidas próprias. Ao assistirem a independência de seus filhos, os pais custam acreditar que o tempo está passando. É difícil e doloroso aceitar que seus bebês estão se tornando homens. Egoístas, os filhos não conseguem dedicar um pouco de seu tempo aos seus pais. Suas vidas são, na opinião deles, prioridade. Minutos de atenção dedicados aos pais são, realmente, muito raros. Neste momento, penso no quanto eu preciso ser pai, para deixarmos de ser tão egoísta. E, claro, para sentir e entender esta dor que, certamente, fará brotar a solidão em meu coração e trará à tona as palavras tão tristes de mais um pai que irá perder seu filho para o mundo...

Reflexões - passado sempre presente

Quarta-feira, 19 de julho de 2006. Este não é o mundo que sonhei. Após 30 anos de existência, afirmo que este mundo é muito diferente daquele que eu via quando era criança. Naquela época, eu imaginava que o mundo fosse repleto de lugares verdes, como se fosse um enorme jardim. Pensava que as árvores pudessem viver em harmonia com o homem e que não precisassem ser arrancadas. Naquele tempo, os lugares onde havia asfalto, energia elétrica, água e esgoto eram raros. Para mim, o mar não passava de um grande rio, cujas ondas se movimentavam com maior intensidade. No ambiente em que eu vivia, as pessoas se relacionavam de forma amigável e respeitosa. Eu não via maldade em nenhuma delas. Eu passava a maior parte do tempo com o papai. Tinha tempo de sobra para brincar, mas não tinha amigos para brincar comigo. Tínhamos um Fusca velho e morávamos numa casa sem forro. Esperávamos, ansiosos, por um futuro melhor. Pois bem. O futuro chegou. Boa parte do verde das matas daquela época já desapareceu. O jardim que eu imaginava não existe. Há apenas enormes florestas de pedra e cimento. Hoje a energia elétrica, água e esgoto são fartos para muitos, mas uma grande parte ainda não tem sequer o que comer. O mar está se tornando, sim, um grande rio, onde são despejadas toneladas e mais toneladas de esgoto. As pessoas se relacionam de maneira cada vez mais fria e, embora pareçam próximas por causa da internet, estão cada vez mais distantes fisicamente. Falta respeito e amizade entre elas. A falsidade predomina nos relacionamentos inter-pessoais, na maioria das vezes movidos por interesses. Há muitas pessoas maldosas, mal-intencionadas, egoístas, egocêntricas e extremamente individualistas. Embora estejam próximas de nós, nem sempre somos capazes de identificá-las... Cada um pensa apenas em si próprio e não consegue enxergar o sofrimento de seus semelhantes.
Hoje tenho pouco tempo para ficar com o papai, a mamãe, meus avós, minha família... Ainda não encontrei os amigos de minha idade que tanto procurei para brincar e jogar conversa fora. Temos um carro mais novo, mas sempre pensamos que vamos precisar vendê-lo para pagar as contas. Ao contrário do que ocorria na infância, não temos esperança em um mundo melhor. Nosso maior sonho é que o passado possa voltar algum dia. Hoje olhamos para o passado, saudosos, com o peito apertado e com um nó na garganta, entristecidos pela sensação de que éramos felizes e não sabíamos. Este, sem dúvida, não é o mundo que eu sonhei, mas é o mundo em que tenho que aprender a sonhar novamente...

Tiro-de-guerra: o dia em que voltei a ter 19 anos

Eu não imaginaria que estaria aqui 11 anos depois. No final de 1995, as lágrimas brotavam só de lembrar que tudo tinha terminado. A partir daquele momento, tinha certeza que só restariam recordações, mas eu havia decidido que deveria distanciar me deste lugar, pois as lembranças ressurgiriam, deixando-me saudoso, emocionado e triste. As paredes ainda são verdes, como se esperaria de um ambiente militar. No centro da quadra, uma enorme bandeira do Brasil encontra-se pintada em cores bem vivas. O antigo banheiro, cujo forro antigamente caía sobre nossas cabeças, agora é um grande e moderno vestiário. A prancha de educação física foi substituída por um belo palanque. Em sua frente, um pequeno gramado, com os dizeres: “TG 02-065”. Seria bom que as diferenças parassem por aí, mas as mais dolorosas eu só notaria segundos depois: o chefe da instrução não é mais o sargento Fernando, e sim o sargento Lélis, e a turma por ele instruída não contém nenhum dos camaradas que eu conheci há 11 anos...
Vestindo a antiga calça do abrigo de educação física e a camisa contendo o nome de todos os atiradores da turma de 1995, eu adentrei o tiro-de-guerra com um aperto no peito e um nó na garganta. Logo avisto o vovô, que está conversando com um dos ex-instrutores que passaram pelo nosso TG. Cumprimento-o e sigo ao lado do meu primo Gustavo, também ex-atirador, em direção às cadeiras. Após alguns minutos, a cerimônia tem início. Os atiradores executam alguns movimentos simples com armas (como nós costumávamos fazer nos velos tempos), muito bem executados, por sinal, sendo sucedidos por uma série de homenagens aos ex-instrutores aqui presentes, dentre eles o 2º. sargento Paulo Alves (hoje capitão), o 2º. sargento Enock (hoje capitão), o 2º. sargento Pianca (hoje capitão), o 1º. Sargento Cássio (hoje subtenente) e... o 1º. Sargento Fernando (hoje tenente). Terminadas as formalidades, vejo o sargento Lélis tomar o microfone em suas mãos e convidar os ex-atiradores para marcharem com a tropa. “Não acredito no que estou ouvindo!”, penso comigo mesmo. Ele repete mais uma, duas vezes. Talvez não somente eu não estivesse querendo acreditar que aquilo fosse verdade. Mas era. Meu coração dispara. Sigo então para a frente do 1º. Pelotão, juntamente com quase uma centena de ex-atiradores de todas as idades. “Tem alguém aí da turma de 1969?”, pergunta um dos ex-atiradores. “Não, eles estão todos internados!”, responde alguém. Estamos todos rindo. O sargento Lélis posiciona-se à nossa frente. “Tiro-de-guerra, sentido!”, brada, com voz de comando. Ouvimos então uma batida no tambor. “Ordinário, marche!” A fanfarra começa a tocar. Projeto então a perna à frente e bato o pé esquerdo, depois o pé direito. As mãos, com os dedos unidos, rasgam novamente o ar. Estou marchando! São pouco mais de 30 metros de marcha, mas são suficientes para despertar um sorriso largo no rosto de todos que aqui estão. Aplausos para a iniciativa! Passam-se alguns minutos e a demonstração da ordem unida começa. Detalhe: sem comando algum! As cenas que meus olhos observam são impressionantes. Durante cerca de 10 minutos os 50 atiradores marcham de um lado para o outro, de forma sincronizada. Às vezes o pelotão, na forma de retângulo, se divide em dois outros retângulos menores. Às vezes se dividem em quatro. Aos que assistem, a sensação de que os atiradores vão trombar com os outros é constante, porém indevida. A apresentação é impecável, digna de palmas. “Vocês fizeram uma apresentação 99,9%. Podem melhorar”, diz o sargento Lélis. Fazia 11 anos que não ouvia esta frase... Após alguns segundos, segue-se a demonstração de desmontagem do fuzil. Era uma das minhas especialidades! Eis que, após a cerimônia, o sargento surpreende a todos. “Algum ex-atirador quer desmontar o fuzil?”. Meu coração dispara novamente. Eu me levanto, já com a frase feita: “Desde que eu não tenha que disputar com ninguém, eu topo”, digo ao sargento. Minha frase foi intencional, pois eu sabia que o tenente Fernando, nosso chefe da instrução, havia comentado ao sargento Lélis que eu era o mais rápido na desmontagem de armamento que ele já tinha visto. Certo. Eu realmente desmontava em 12 ou 13 segundos, atingindo uma marca recorde de 10 segundos. Mas isso faz 11 anos! Nos minutos que se sucedem, o mundo parece parar. Meus ouvidos parecem ter ensurdecido. Não há nada ao meu redor. Só existimos eu e o fuzil, e por ironia do destino, nós já não somos tão íntimos como antigamente... Terminada a demonstração, sigo em direção ao sargento Lélis para agradecer-lhe a oportunidade de realizar dois sonhos que vinham me acompanhando há 11 anos. Mas algo está errado. Percebo que ex-atiradores estão em turmas. Onde está a minha turma, a de 1995? Não vejo ninguém! Sou então abatido por uma grande tristeza e decepção. “Eles vão apenas ao churrasco”, penso. No churrasco, promovido em comemoração aos 60 anos do “nosso” tiro-de-guerra, apenas 5 atiradores da nossa turma: Araújo, Crotti (eu), Honório, Nunes e Martins. Meu Deus! Onde estarão os outros 55? Será que não puderam vir ou terão dado pouca importância ao evento? Fico então lembrando que nestes 11 anos que se passaram desde que terminamos o tiro-de-guerra, nossa turma jamais se reuniu. Mais um motivo de tristeza... Enquanto isso, lá em cima do palanque, segue-se uma série de homenagens aos ex-instrutores. Solicitam ex-atiradores voluntários para entregarem uma placa em homenagem aos seus respectivos chefes de instrução. Eis que ouço o “sargento” Fernando (hoje tenente) chamar-me pelo nome. Sim, sou eu quem vai lhe entregar a placa! Caramba, que honra! E o coração volta a bater acelerado novamente... Já em nossas mesas, a carne, enfim, aparece! Carne, mandioca e pão. Não é um grande cardápio, eu sei. Mas... minha alma já está alimentada e satisfeita com todas as emoções vividas por hoje. Um sentimento divino toma conta de mim. Algo que não sei explicar, mas que eu senti apenas quando tinha 19 anos. Por um dia, 11 anos depois, eu sinto novamente a sensação de ser um atirador. Ah, como é bom sentir-se jovem novamente... Obrigado, Senhor!

Meu amigo, o "Gordo"

Carlos Henrique Ceribelli. É este o nome deste rapaz aí da foto acima. Nós nos conhecemos em 1988, quando estudamos juntos na 6ª. Série, na escola aqui perto de casa (E. E. P. G. “Manoel Gouveia de Lima”). Naquela época eu já era o aluno mais quieto da turma e também um dos que obtinham as maiores notas nas provas. Mas eu era muito tímido. O Carlos, a quem eu me acostumei a chamar de “Gordo” (olha o porte físico da criança...), era uma das pessoas com quem eu mais me identificava. Éramos em três amigos: o Gordo, o Rodrigo (a quem chamávamos de “Tião”) e eu (já com o consolidado apelido de “Tonhão”, que surgira em 1986). Nós tínhamos muito em comum: quietos, tímidos e muito simples, mas também éramos completamente diferentes. O Gordo era de uma família muito humilde e, apesar do porte físico avantajado, sempre gostou de jogar futebol. Talvez isso tenha me deixado mais próximo dele que do Tião. Guardo na lembrança os momentos inesquecíveis de quando fomos jogar no estádio Ceribelli, onde o Garrincha (sim, o “Anjo das pernas tortas”!) jogou uma de suas últimas partidas antes de deixar órfão nosso futebol. Eu nunca havia jogado em um campo tão grande! Em uma outra ocasião, o Gordo convidou-me para jogar em uma fazenda. Bem, quaisquer palavras que eu usar para descrever aquela experiência serão completamente ineficazes para expressar quão inesquecível ela foi. Muitos jogavam descalço e, mesmo assim, se arriscavam a dar as famosas divididas com aqueles que calçavam chuteiras. E pasmem: muitas vezes ganhavam! O goleiro que jogou para o nosso time era um senhor que beirava os 50 anos. Acreditem ou não (não é história de pescador!!!), ele jogou totalmente embriagado e, ainda assim, “fechou o gol” (como costumam dizer na linguagem futebolística). O vovô Mila, que assistiu a toda aquela cena, ria o tempo todo... Em 1990, após dois anos estudando juntos, o Gordo começou a trabalhar e precisou estudar no período noturno. Ele e o Tião, que também começou a trabalhar. Eu fiquei sozinho, estudando no período matutino. Mas nos anos que se seguiriam eu não me separaria do Gordo. Muito pelo contrário; nossa amizade se tornaria mais forte. Mesmo não estudando mais juntos, eu ia à casa dele para jogarmos Maia. Ele, o pai dele, o irmão dele e eu. Também jogávamos truco nas noites de sábado. Quando comecei a gostar de música (isso, claro, depois que a mamãe comprou um rádio relógio), eu adquiri duas fitas da Madonna (os álbuns “True Blue” e “Like a Prayer”, se não me engano). Eu ia à sua casa para ouvir estas fitas no rádio dele. A gente ficava até altas horas (para quem não é daquela época, saibam que 22 h era praticamente madrugada...) conversando e ouvindo as músicas na varanda. Em outras palavras, o Gordo foi amigo constante durante os anos mais dourados da minha juventude. Quanto ao Tião, eu nunca mais o veria até o ano de 1995. A partir de então eu voltaria a ter com ele longas conversas até 1998, durante o percurso de ônibus até a universidade, onde ele cursava Desenho Industrial. O Gordo era assunto constante em nossos diálogos. A gente desejava muito que ele estivesse ali conosco. Mas o Gordo não gostava de estudar e abandonou a escola após terminar o ensino fundamental. Em 1994, quando seu pai teve um derrame cerebral, o Gordo teve que assumir o comando de sua casa. Para sustentar a família, ele passou a trabalhar de madrugada dirigindo o caminhão canavieiro que era de seu pai, enquanto o mesmo se recuperava das seqüelas. A partir de então a gente passou a se ver com menos freqüência. Mesmo assim, eu jamais me esqueci do Gordo. De vez em quando eu ia à sua casa e ele, sempre que podia, vinha visitar-me. O Tião, por outro lado, nunca veio à minha casa. Nem na juventude, nem na época de graduação, nem nos anos que se seguiriam. Lembro-me dele no portão aqui de casa uma ou duas vezes, mas bem sei que ele o fez por eu tanto ter insistido. O tempo passou (é, ele sempre passa...). O Tião se casou e nunca mais o vi. Nem telefonema, nem carta, nem e-mail, nem nada. Às vezes pergunto dele para o “Renatim”, sobrinho dele, com quem jogo futebol aos sábados à tarde. Ironia do destino: o Renatim sempre se lembra de mim (eu fui professor dele ano passado) e passa aqui em casa para irmos jogar futebol. Em outras palavras, ele faz o que o tio dele nunca fez. O Gordo não tem ensino médio, não tem nível superior nem tampouco qualquer diploma. O Gordo não tem dinheiro, não convive comigo diariamente e, portanto, eu não faço mais parte da vida cotidiana dele. Ainda assim, o Gordo é o único que vem visitar-me aqui em casa. É o único que tem se lembrado de mim como amigo nos últimos 18 anos. Em nossa vida, é preciso saber diferenciar os amigos de verdade, como o Gordo, dos colegas que passam por nossas vidas, como o Tião passou pela minha. Este post é uma homenagem simples, porém muito sincera, a este meu grande amigo, o Gordo. É também uma forma de mostrar a todos aqueles que lerem esta mensagem que a amizade verdadeira não depende de dinheiro, nem de diploma, nem tampouco da convivência cotidiana. Depende apenas do respeito e da consideração entre duas pessoas. E o mais importante: a amizade não se apaga com o tempo.

Enquanto isso, no passado...

Sexta-feira, 23 de junho de 2006. O dia está nublado, porém muito seco. Nuvens escuras de fumaça teimam em esconder o sol, mas não há previsão de chuva. A única coisa que precipita do céu é a fuligem da queima das lavouras de cana-de-açúcar. Diante deste clima, típico do inverno da região da Alta Mogiana, um clima de tristeza paira no ar. Papai, mamãe e eu estamos conversando na cozinha. A mamãe está lavando alguns pratos, o papai está me observando enquanto eu tomo o tradicional copo de leite de todas as manhãs. Há algo diferente eu seu olhar. Conhecendo-o como eu o conheço, sinto que ele está nostálgico. “Meu filho...”, diz ele, em tom pausado. “Eu pedi um filho a Deus e ele me enviou um do jeito que eu havia pedido”, desabafa, enquanto me abraça. Eu abraço o meu querido papai. Decorridas duas décadas e meia desde a surra que ele me deu, eu tenho novamente em meu pai o meu grande companheiro. Sinto ternura em seu abraço. A mamãe observa tudo e, embora nada diga, sinto que está feliz, mas não menos nostálgica. A mamãe sai em direção ao quarto, enquanto eu e o papai continuamos nossa conversa, lembrando fatos de quando eu era pequeno. Dentro de dois minutos, a mamãe retorna. De óculos, ela esvazia as mãos cheias de fotos, depositando-as sobre a mesa. “Olha, bem, que coisa mais linda que ele era. ..Como a gente gostava de você, filho!”, diz ela, emocionada. “Era, né mamãe? Agora eu fiquei feio e a senhora e o papai não gosta mais de mim, né?!”, digo, já aguardando a resposta de sempre. “Deixa de ser bobo, filho. É só um jeito de falar”. O papai passa os olhos sobre as fotos, deixando a saudade sair pelos poros a cada uma delas. “Nessa época a gente era feliz e não sabia...” “Olha, filho. Nesta foto você está com aquela fita nas mãos”, comenta a mamãe. A fita cassete a que ela se refere é bem antiga. Nela o papai havia registrado, com o uso de um gravador antigo que ele havia comprado por volta dos seus 20 anos, momentos muito especiais, como a “Fia” (minha irmã) cantando “Menina veneno”, do Ritchie, eu chorando, meus bisavós paternos conversando e, inclusive, o papai pedindo a mamãe em casamento (!!!!). “Nossa, bem... Se tivesse jeito de salvar o que tem nessa fita, né? Eu acho que de tão velha que ela é, ela não toca mais em lugar nenhum...”, diz a mamãe, com voz chorosa. “Mamãe, onde está a fita?”. Depois de alguns minutos no quarto, a mamãe volta com a tal fita. “Está aqui, filho”. Pego então a fita e me tranco no quarto. Abro o rádio toca-fitas, que nunca usei, introduzo lá a fita e aciono o mp3 player na função de gravador de voz. Meia hora depois, abro a porta. “Papai! Mamãe! Venham cá!”, digo, gritando por eles. A mamãe vem e fica aqui ao meu lado. O papai fica na varanda, sentado na cadeira. Um dos seus braços está dependurado no encosto da cadeira, enquanto o outro está com os cotovelos apoiadso na mesa e as mãos sustentando o queixo. Enquanto ouve, seus olhos estão voltados para o chão. Ele parece triste. “Ai, que saudade...”, suspira ele. No meio da fita, uma conversa da minha querida e saudosa tia Alice, que já não está mais entre nós. “Pois é, né? Olha só o que que é uma pessoa inteligente pra fazer uma coisa dessas!”, diz ela ao meu bisavô, referindo-se ao gravador que o papai estava usando na época. Passados quase 30 anos, cá estou com um mp3 player do tamanho de uma caixa de palito de dentes, seguindo o caminho de meu pai: registrando as passagens para lembrar daqui há vários anos. De repente, dou-me conta que meus avós também não estarão aqui daqui a algum tempo. É, papai, eu entendo quais são os motivos de sua tristeza...
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