domingo, 10 de fevereiro de 2008

À minha grande amiga - parte 2

Outubro de 1999. 9h20min. Não há ninguém que me conheça neste lugar, pelo menos não que eu saiba. Da mesma forma, todos os rostos me surgem pela primeira vez. Sou um desconhecido, todos são desconhecidos para mim. No entanto, tenho a impressão de que alguém acabou de tocar meu ombro e, ao fazê-lo, chamou-me pelo nome. Por uma fração de segundos, sinto vontade rir. “Deve ter sido miragem. Ninguém me conhece neste deserto”. Por via das dúvidas, decido virar-me. Para minha surpresa, há alguém atrás de mim, que ao me ver girando o pescoço, puxa um outro tamborete e se coloca sentada à minha frente, próxima à bancada. Aquela mulher magra, de pele branca e cabelos castanhos claros, aparentando uns 28 anos, esboça um sorriso cordial e estende sua mão direita em minha direção. “Muito prazer. Meu nome é Ana Cláudia”. Sem que eu nada perguntasse, aquela então desconhecida começa a explicar-me que é amiga do Wilson e do “Norba”, os professores de graduação que mais me incentivaram a ingressar na pós-graduação. Ela me conta que eles foram colegas de laboratório e, de quebra, narra alguns acontecimentos engraçados envolvendo os dois. Eu rio das coisas engraçadas que ela me conta. Como minhas risadas não são o ponto forte de minha discrição, percebo que as demais pessoas daquele lugar começam a rir do meu jeito e do meu sotaque “caipiras”. “O Wilson me disse que você viria. Conte comigo para o que precisar.” Enfim, há alguém com quem eu possa contar. “Obrigado Ana”. De repente, um lampejo. “Peraí, você é a Aninha?” Ela sorri. “Sim, é assim que o Wilson e os amigos me chamam.” Recordo-me então dos elogios que o Wilson tecia à sua capacidade intelectual, competência e bondade. Levanto as sobrancelhas, demonstrando surpresa. “Muito prazer, Aninha”, digo, oferecendo-lhe a mão novamente. Ela acha engraçado. “Desde já lhe agradeço. Pode ter certeza de que eu vou precisar muuuuito da sua ajuda”. 9h40min. A Ana se levanta do tamborete. “Venha, vou lhe apresentar os seus colegas de laboratório. Fica evidente que ela se dá bem com todos. Vejo, pelo olhar de cada um deles, que a Ana é muito querida. “O nome dele é Miller. Ele é aluno de mestrado do prof. João”, diz a eles minha nova amiga. “Esta é a Ana Cláudia. Para não confundir nós duas, chame-me de Aninha e a ela de Kaká”. Pela estatura da Kaka, dá pra entender porque usaram o diminutivo no apelido “Aninha”. Não, certamente não vou confundir. Rute, Marcos Salvador, Eliane, Elisandra, Andréia, Renatinha, Sakamoto, Cristiane Jordão, Cristiane Grael, Cléber, Fabiana, Augusto. É claro que em um primeiro momento, não conseguirei associar esses nomes a cada uma das pessoas. Mas agora todos sabem meu nome, e eu sei que posso contar com pelo menos uma delas: a “Aninha”. 9h50min. Após ser apresentado aos colegas, chamo a “Aninha” até a minha bancada. Sento em meu tamborete e ofereço-lhe um outro a ela. Ela se senta, curiosa. Pego então o papel em que o professor João havia desenhado todos aqueles esquemas e mostro a ela. “Ana, o prof. João disse-me que é pra eu fazer isso aí. Você sabe o que é? Você pode me ajudar?”. Ela pega o papel, faz uma cara de preocupada, depois balança a cabeça em sinal negativo, sorri e me devolve o papel. "O que você quer dizer com esse sorriso?"
(to be continued...)

À minha grande amiga - parte 1

Outubro de 1999. 8h. O elevador pára no 3º. andar do bloco M da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto. A porta se abre e o metal polido das portas do elevador é substituído por uma enorme parede cinzenta. Dou alguns passos para a esquerda e deixo o velho elevador para trás. À minha frente há um enorme corredor, pouco iluminado. De vez em quando algumas pessoas cruzam-no de um lado para outro. A expectativa que toma conta de mim pode ser comparada à de quem assiste a um filme de suspense (embora eu não tenha, inacreditavelmente, aos 24 anos, jamais entrado em um cinema...). Mas este não é um filme de suspense, e sim de aventura. É hoje, enfim, o dia em que iniciarei a parte experimental do mestrado, e pra falar a verdade, eu não tenho a mínima idéia de nada do que irei fazer nos próximos minutos. 8h20min. Estou na sala do professor João. Enquanto olho os diplomas pendurados pelas paredes e a quantidade enorme de projetos e artigos em cima de sua mesa, ele segue tentando explicar-me quais os procedimentos que deverei seguir para fracionar os extratos que estão sobre a mesa dele. Mas o cheiro de conhecimento daquele lugar deixa-me cego e surdo. Sinto-me um ignorante diante das coisas que ele está explicando, pois não entendo a maioria delas. Limito-me apenas a balançar a cabeça em sinal afirmativo. Ele então larga a caneta sobre a mesa, pega o papel amarelado e o estende até mim. Eu pego o papel nas mãos e tento, em vão, entender o que está escrito ali. Ele projeta seu corpo para trás e o deixa cair sobre o encosto da cadeira reclinável. “Alguma dúvida, Miller?” Claro que não. Pelo menos nenhuma que eu possa esclarecer neste momento. “Então ao trabalho”. Ele se levanta e me pede para segui-lo. 8h45min. Estou parado à porta do laboratório de Química Orgânica da USP. Ao meu lado, o professor João olha de um lado para o outro, com a caixa contendo os extratos em mão. “Venha até aqui, Miller”, diz ele, seguindo em direção a uma bancada. Ele me apresenta então o lugar onde provavelmente passarei minhas próximas noites, e talvez os meus próximos anos. Coloco sobre a bancada o papel contendo as informações que ele me passou e respiro fundo. Quando me viro em direção a ele e tento esboçar alguma reação – sim, eu estou em pânico! – sinto o peso de sua mão cair sobre o meu ombro. “Agora é contigo. Boa sorte!”. Ele se vira e retorna à sua sala. 8h55min. A situação é desesperadora. Preciso desenvolver o meu projeto de mestrado e não tenho a mínima idéia de como começar. Os esquemas que o professor João parecem-me um montem de códigos indecifráveis. Há também alguns palavrões, como “partição”, “decantação”, “cromatografia em camada delgada”. Não sei nem por onde começar. Olho ao redor. Há vários pós-graduandos trabalhando, todos vestindo seus jalecos brancos. São mulheres em sua maioria, e cada uma delas parece mergulhada em seus próprios problemas. Não tenho amizade com nenhuma delas, e pela forma como me ignoram, começo a acreditar que a parte experimental será um desafio tão difícil quanto cumprir os créditos em disciplinas. 9h15min. Após 20min tentando entender o que o professor João deixou registrado naquele papel, um profundo desânimo se abate sobre mim. Começo então a olhar para cada uma daqueles “colegas” – será que posso chamá-los assim? Todos parecem tensos, mergulhados em seus próprios problemas. Será que todos são arrogantes? Afinal, todos eles estão estudando na USP. “Ora, eu também estou!”, diz o meu lado otimista. “É, você está é encrencado!”, rebate o meu lado pessimista. Sento-me então em um pequeno tamborete, e com os dois ombros apoiados sobre a bancada, coloco as duas mãos no rosto, sem saber o que fazer. “Meu Deus, por favor, me ajude! Não sei o que fazer!”. Sinto então uma mão tocar meu ombro e uma voz feminina dizendo: “Você é o Miller, não é?”
(to be continued...)

A dor de um pai que perde seu filho

Sábado, 29 de julho de 2006. 15h26min. Acabo de entrar em meu quarto. Há 50 min atrás eu estava em Franca, ministrando aulas na pós-graduação. Estou exausto. Caminho com o corpo projetado à frente, os ombros encolhidos. Preciso dormir. Sento na cama, tiro os sapatos. Neste momento, o papai aparece à porta do meu pequeno quarto. Bate uma mão contra a outra, esfrega as duas no rosto, passa os dedos entre os cabelos. “Filho do céu! O papai viu um carro que é perfeito pra você!”. Eu sei ao que ele se refere. A mamãe havia me prevenido do entusiasmo dele com relação a um carro que ele viu em uma revendedora de veículos aqui da cidade. Mesmo estando cansado, o entusiasmo do papai faz surgir um riso tímido, que não chega a expor meus dentes. “Papai, o senhor sabe que eu estou construindo a minha casa, e que esta é agora a minha grande prioridade. Não posso trocar o carro, não”, esclareço-lhe. “Filho, se você ver, você vai babar! Vamos lá ver o carro. O papai te leva lá, vamos!” Não tenho forças para isso. “Papai, eu vou dormir. Preciso descansar. Depois a gente vai lá, ta?” Meio que contrariado, ele vira as costas e se dirige à sala, onde passa boa parte do tempo assistindo televisão. Sem conseguir organizar meus pensamentos e sem dar muita importância ao que acabou de acontecer, eu forro o chão com um lençol e me deito, com as pernas para cima. Tenho dormido nesta posição por causa das dores na coluna. Por incrível que pareça, tenho observado que as dores estão desaparecendo aos poucos. Estendido pelo chão, eu fecho os olhos. Acordarei daqui a uns 40 min. 16h50min. Ao ouvir o barulho dos pingos da chuva contra as telhas, decidi dormir um pouco mais do que o previsto. Afinal, com chuva não vai haver o futebol das tardes de sábado. Ou será que vai? Com o ânimo renovado, projeto o tronco à frente e, após um rápido flexionar de joelhos, posiciono-me de pé. Calço os chinelos e dirijo-me ao portão. “Mamãe, eu vou lá ver se a turma vai jogar futebol, tá?”. Ao ter como resposta um simples movimento de pescoço, dirijo-me ao portão. Como de costume, o atrito do trinco com o portão devido à falta de graxa alerta que estou saindo. “Filho! Onde você vai?”, ouço, já na rua, a caminho da academia, o papai gritando por mim, lá de dentro de casa.... Mesmo com a quadra molhada, lá estão os colegas. Correm como se não houvesse nenhuma poça d’água dentro da quadra. “Tonhão, vai lá calçar um tênis!” Ao ver a animação deles, dou meia volta e retorno para casa. Minha presença é novamente acusada pelo ranger do trinco do portão. Lá vem o papai. “Filho, vamos lá ver o carro. Ele é do jeito que você sonhou!”, diz ele, com o entusiasmo aparentemente renovado. “Papai, mas eu não posso comprar ele agora. O senhor sabe qual é a minha situação. Estou gastando muito com a construção da casa. Nem o senhor eu estou podendo ajudar, dirá então trocar de carro...” “Mas eu não quero que você compre. É só pra ver. Filho, você precisa ver que carro ‘ajeitado’!” Enquanto ouço ele falar, abro a sacola onde ficam o tênis, a tornozeleira e a caneleira. A expressão do papai então endurece. “Aonde você vai?”, pergunta, como se já soubesse a resposta. “Vou jogar bola”, respondo. Sentado à cadeira, ele, que inicialmente estava sentado à ponta da cadeira, acomoda as costas e olha para o céu, com um olhar perdido. “É isso que um pai ganha. Eu te criei com tanto amor e você não tem nem um minuto pra mim. Quando eu era mais novo, quando a situação financeira aqui em casa era melhor, quando eu ainda mandava em vocês, aí sim você e sua irmã ligavam pra mim. Agora que não precisam mais de mim, meu destino é ficar jogado às traças. Isso é muito duro para um pai. Mas pode deixar. Você ainda vai ter um filho e sentir a mesma coisa que eu. Aí você vai ver o quanto é doloroso e vai se lembrar de seu velho pai”. Tentando demonstrar naturalidade, eu me dirijo até o portão. “Tchau, papai! Tchau, mamãe!”. Sigo então em direção à academia. Meus passos, entretanto, são curtos. Caminho olhando para o chão, tentando controlar a respiração. As palavras do papai transpassaram-me o coração. Sinto um nó na garganta. Olho então para o céu e ensaio uma pequena corrida até a academia. Está difícil conter as lágrimas... Neste momento, eu me sinto o pior dos seres humanos, o pior dos filhos da face da terra. Pior que isso: eu me sinto o mais egoísta. Paro, então, por um instante. Penso em voltar para trás, mas o meu egoísmo abafa qualquer tentativa de voltar atrás. Talvez eu esteja empolgado e iludido com o meu desempenho no sábado passado... Entro então em quadra. Os passes não saem, os chutes não vão em direção ao gol, os dribles são facilmente desarmados. “Tonhão, você ta feio hoje, hein?”, grita alguém, aludindo-se ao meu rendimento pífio... Após 50 min, eu volto para casa tão derrotado quanto a deixei. Na sala, o papai está sentado no sofá, apoiado à almofada. “Agora é tarde demais pra ver o carro, você não acha?” Tentando segurar as lágrimas, eu olho dentro dos olhos dele. Parecem estar úmidos também. Pego então em sua mão e ficamos nos olhando, sem dizer nada. Não é preciso. 1h21min. As palavras de meu pai ecoam como um sino em memória. “Um dia você terá um filho e sentir a mesma coisa que eu.” Perder os filhos para o mundo é talvez uma das feridas mais tristes de serem cicatrizadas no coração de um pai. À medida que crescem, passam a ter vidas próprias. Ao assistirem a independência de seus filhos, os pais custam acreditar que o tempo está passando. É difícil e doloroso aceitar que seus bebês estão se tornando homens. Egoístas, os filhos não conseguem dedicar um pouco de seu tempo aos seus pais. Suas vidas são, na opinião deles, prioridade. Minutos de atenção dedicados aos pais são, realmente, muito raros. Neste momento, penso no quanto eu preciso ser pai, para deixarmos de ser tão egoísta. E, claro, para sentir e entender esta dor que, certamente, fará brotar a solidão em meu coração e trará à tona as palavras tão tristes de mais um pai que irá perder seu filho para o mundo...

Reflexões - passado sempre presente

Quarta-feira, 19 de julho de 2006. Este não é o mundo que sonhei. Após 30 anos de existência, afirmo que este mundo é muito diferente daquele que eu via quando era criança. Naquela época, eu imaginava que o mundo fosse repleto de lugares verdes, como se fosse um enorme jardim. Pensava que as árvores pudessem viver em harmonia com o homem e que não precisassem ser arrancadas. Naquele tempo, os lugares onde havia asfalto, energia elétrica, água e esgoto eram raros. Para mim, o mar não passava de um grande rio, cujas ondas se movimentavam com maior intensidade. No ambiente em que eu vivia, as pessoas se relacionavam de forma amigável e respeitosa. Eu não via maldade em nenhuma delas. Eu passava a maior parte do tempo com o papai. Tinha tempo de sobra para brincar, mas não tinha amigos para brincar comigo. Tínhamos um Fusca velho e morávamos numa casa sem forro. Esperávamos, ansiosos, por um futuro melhor. Pois bem. O futuro chegou. Boa parte do verde das matas daquela época já desapareceu. O jardim que eu imaginava não existe. Há apenas enormes florestas de pedra e cimento. Hoje a energia elétrica, água e esgoto são fartos para muitos, mas uma grande parte ainda não tem sequer o que comer. O mar está se tornando, sim, um grande rio, onde são despejadas toneladas e mais toneladas de esgoto. As pessoas se relacionam de maneira cada vez mais fria e, embora pareçam próximas por causa da internet, estão cada vez mais distantes fisicamente. Falta respeito e amizade entre elas. A falsidade predomina nos relacionamentos inter-pessoais, na maioria das vezes movidos por interesses. Há muitas pessoas maldosas, mal-intencionadas, egoístas, egocêntricas e extremamente individualistas. Embora estejam próximas de nós, nem sempre somos capazes de identificá-las... Cada um pensa apenas em si próprio e não consegue enxergar o sofrimento de seus semelhantes.
Hoje tenho pouco tempo para ficar com o papai, a mamãe, meus avós, minha família... Ainda não encontrei os amigos de minha idade que tanto procurei para brincar e jogar conversa fora. Temos um carro mais novo, mas sempre pensamos que vamos precisar vendê-lo para pagar as contas. Ao contrário do que ocorria na infância, não temos esperança em um mundo melhor. Nosso maior sonho é que o passado possa voltar algum dia. Hoje olhamos para o passado, saudosos, com o peito apertado e com um nó na garganta, entristecidos pela sensação de que éramos felizes e não sabíamos. Este, sem dúvida, não é o mundo que eu sonhei, mas é o mundo em que tenho que aprender a sonhar novamente...

Tiro-de-guerra: o dia em que voltei a ter 19 anos

Eu não imaginaria que estaria aqui 11 anos depois. No final de 1995, as lágrimas brotavam só de lembrar que tudo tinha terminado. A partir daquele momento, tinha certeza que só restariam recordações, mas eu havia decidido que deveria distanciar me deste lugar, pois as lembranças ressurgiriam, deixando-me saudoso, emocionado e triste. As paredes ainda são verdes, como se esperaria de um ambiente militar. No centro da quadra, uma enorme bandeira do Brasil encontra-se pintada em cores bem vivas. O antigo banheiro, cujo forro antigamente caía sobre nossas cabeças, agora é um grande e moderno vestiário. A prancha de educação física foi substituída por um belo palanque. Em sua frente, um pequeno gramado, com os dizeres: “TG 02-065”. Seria bom que as diferenças parassem por aí, mas as mais dolorosas eu só notaria segundos depois: o chefe da instrução não é mais o sargento Fernando, e sim o sargento Lélis, e a turma por ele instruída não contém nenhum dos camaradas que eu conheci há 11 anos...
Vestindo a antiga calça do abrigo de educação física e a camisa contendo o nome de todos os atiradores da turma de 1995, eu adentrei o tiro-de-guerra com um aperto no peito e um nó na garganta. Logo avisto o vovô, que está conversando com um dos ex-instrutores que passaram pelo nosso TG. Cumprimento-o e sigo ao lado do meu primo Gustavo, também ex-atirador, em direção às cadeiras. Após alguns minutos, a cerimônia tem início. Os atiradores executam alguns movimentos simples com armas (como nós costumávamos fazer nos velos tempos), muito bem executados, por sinal, sendo sucedidos por uma série de homenagens aos ex-instrutores aqui presentes, dentre eles o 2º. sargento Paulo Alves (hoje capitão), o 2º. sargento Enock (hoje capitão), o 2º. sargento Pianca (hoje capitão), o 1º. Sargento Cássio (hoje subtenente) e... o 1º. Sargento Fernando (hoje tenente). Terminadas as formalidades, vejo o sargento Lélis tomar o microfone em suas mãos e convidar os ex-atiradores para marcharem com a tropa. “Não acredito no que estou ouvindo!”, penso comigo mesmo. Ele repete mais uma, duas vezes. Talvez não somente eu não estivesse querendo acreditar que aquilo fosse verdade. Mas era. Meu coração dispara. Sigo então para a frente do 1º. Pelotão, juntamente com quase uma centena de ex-atiradores de todas as idades. “Tem alguém aí da turma de 1969?”, pergunta um dos ex-atiradores. “Não, eles estão todos internados!”, responde alguém. Estamos todos rindo. O sargento Lélis posiciona-se à nossa frente. “Tiro-de-guerra, sentido!”, brada, com voz de comando. Ouvimos então uma batida no tambor. “Ordinário, marche!” A fanfarra começa a tocar. Projeto então a perna à frente e bato o pé esquerdo, depois o pé direito. As mãos, com os dedos unidos, rasgam novamente o ar. Estou marchando! São pouco mais de 30 metros de marcha, mas são suficientes para despertar um sorriso largo no rosto de todos que aqui estão. Aplausos para a iniciativa! Passam-se alguns minutos e a demonstração da ordem unida começa. Detalhe: sem comando algum! As cenas que meus olhos observam são impressionantes. Durante cerca de 10 minutos os 50 atiradores marcham de um lado para o outro, de forma sincronizada. Às vezes o pelotão, na forma de retângulo, se divide em dois outros retângulos menores. Às vezes se dividem em quatro. Aos que assistem, a sensação de que os atiradores vão trombar com os outros é constante, porém indevida. A apresentação é impecável, digna de palmas. “Vocês fizeram uma apresentação 99,9%. Podem melhorar”, diz o sargento Lélis. Fazia 11 anos que não ouvia esta frase... Após alguns segundos, segue-se a demonstração de desmontagem do fuzil. Era uma das minhas especialidades! Eis que, após a cerimônia, o sargento surpreende a todos. “Algum ex-atirador quer desmontar o fuzil?”. Meu coração dispara novamente. Eu me levanto, já com a frase feita: “Desde que eu não tenha que disputar com ninguém, eu topo”, digo ao sargento. Minha frase foi intencional, pois eu sabia que o tenente Fernando, nosso chefe da instrução, havia comentado ao sargento Lélis que eu era o mais rápido na desmontagem de armamento que ele já tinha visto. Certo. Eu realmente desmontava em 12 ou 13 segundos, atingindo uma marca recorde de 10 segundos. Mas isso faz 11 anos! Nos minutos que se sucedem, o mundo parece parar. Meus ouvidos parecem ter ensurdecido. Não há nada ao meu redor. Só existimos eu e o fuzil, e por ironia do destino, nós já não somos tão íntimos como antigamente... Terminada a demonstração, sigo em direção ao sargento Lélis para agradecer-lhe a oportunidade de realizar dois sonhos que vinham me acompanhando há 11 anos. Mas algo está errado. Percebo que ex-atiradores estão em turmas. Onde está a minha turma, a de 1995? Não vejo ninguém! Sou então abatido por uma grande tristeza e decepção. “Eles vão apenas ao churrasco”, penso. No churrasco, promovido em comemoração aos 60 anos do “nosso” tiro-de-guerra, apenas 5 atiradores da nossa turma: Araújo, Crotti (eu), Honório, Nunes e Martins. Meu Deus! Onde estarão os outros 55? Será que não puderam vir ou terão dado pouca importância ao evento? Fico então lembrando que nestes 11 anos que se passaram desde que terminamos o tiro-de-guerra, nossa turma jamais se reuniu. Mais um motivo de tristeza... Enquanto isso, lá em cima do palanque, segue-se uma série de homenagens aos ex-instrutores. Solicitam ex-atiradores voluntários para entregarem uma placa em homenagem aos seus respectivos chefes de instrução. Eis que ouço o “sargento” Fernando (hoje tenente) chamar-me pelo nome. Sim, sou eu quem vai lhe entregar a placa! Caramba, que honra! E o coração volta a bater acelerado novamente... Já em nossas mesas, a carne, enfim, aparece! Carne, mandioca e pão. Não é um grande cardápio, eu sei. Mas... minha alma já está alimentada e satisfeita com todas as emoções vividas por hoje. Um sentimento divino toma conta de mim. Algo que não sei explicar, mas que eu senti apenas quando tinha 19 anos. Por um dia, 11 anos depois, eu sinto novamente a sensação de ser um atirador. Ah, como é bom sentir-se jovem novamente... Obrigado, Senhor!

Meu amigo, o "Gordo"

Carlos Henrique Ceribelli. É este o nome deste rapaz aí da foto acima. Nós nos conhecemos em 1988, quando estudamos juntos na 6ª. Série, na escola aqui perto de casa (E. E. P. G. “Manoel Gouveia de Lima”). Naquela época eu já era o aluno mais quieto da turma e também um dos que obtinham as maiores notas nas provas. Mas eu era muito tímido. O Carlos, a quem eu me acostumei a chamar de “Gordo” (olha o porte físico da criança...), era uma das pessoas com quem eu mais me identificava. Éramos em três amigos: o Gordo, o Rodrigo (a quem chamávamos de “Tião”) e eu (já com o consolidado apelido de “Tonhão”, que surgira em 1986). Nós tínhamos muito em comum: quietos, tímidos e muito simples, mas também éramos completamente diferentes. O Gordo era de uma família muito humilde e, apesar do porte físico avantajado, sempre gostou de jogar futebol. Talvez isso tenha me deixado mais próximo dele que do Tião. Guardo na lembrança os momentos inesquecíveis de quando fomos jogar no estádio Ceribelli, onde o Garrincha (sim, o “Anjo das pernas tortas”!) jogou uma de suas últimas partidas antes de deixar órfão nosso futebol. Eu nunca havia jogado em um campo tão grande! Em uma outra ocasião, o Gordo convidou-me para jogar em uma fazenda. Bem, quaisquer palavras que eu usar para descrever aquela experiência serão completamente ineficazes para expressar quão inesquecível ela foi. Muitos jogavam descalço e, mesmo assim, se arriscavam a dar as famosas divididas com aqueles que calçavam chuteiras. E pasmem: muitas vezes ganhavam! O goleiro que jogou para o nosso time era um senhor que beirava os 50 anos. Acreditem ou não (não é história de pescador!!!), ele jogou totalmente embriagado e, ainda assim, “fechou o gol” (como costumam dizer na linguagem futebolística). O vovô Mila, que assistiu a toda aquela cena, ria o tempo todo... Em 1990, após dois anos estudando juntos, o Gordo começou a trabalhar e precisou estudar no período noturno. Ele e o Tião, que também começou a trabalhar. Eu fiquei sozinho, estudando no período matutino. Mas nos anos que se seguiriam eu não me separaria do Gordo. Muito pelo contrário; nossa amizade se tornaria mais forte. Mesmo não estudando mais juntos, eu ia à casa dele para jogarmos Maia. Ele, o pai dele, o irmão dele e eu. Também jogávamos truco nas noites de sábado. Quando comecei a gostar de música (isso, claro, depois que a mamãe comprou um rádio relógio), eu adquiri duas fitas da Madonna (os álbuns “True Blue” e “Like a Prayer”, se não me engano). Eu ia à sua casa para ouvir estas fitas no rádio dele. A gente ficava até altas horas (para quem não é daquela época, saibam que 22 h era praticamente madrugada...) conversando e ouvindo as músicas na varanda. Em outras palavras, o Gordo foi amigo constante durante os anos mais dourados da minha juventude. Quanto ao Tião, eu nunca mais o veria até o ano de 1995. A partir de então eu voltaria a ter com ele longas conversas até 1998, durante o percurso de ônibus até a universidade, onde ele cursava Desenho Industrial. O Gordo era assunto constante em nossos diálogos. A gente desejava muito que ele estivesse ali conosco. Mas o Gordo não gostava de estudar e abandonou a escola após terminar o ensino fundamental. Em 1994, quando seu pai teve um derrame cerebral, o Gordo teve que assumir o comando de sua casa. Para sustentar a família, ele passou a trabalhar de madrugada dirigindo o caminhão canavieiro que era de seu pai, enquanto o mesmo se recuperava das seqüelas. A partir de então a gente passou a se ver com menos freqüência. Mesmo assim, eu jamais me esqueci do Gordo. De vez em quando eu ia à sua casa e ele, sempre que podia, vinha visitar-me. O Tião, por outro lado, nunca veio à minha casa. Nem na juventude, nem na época de graduação, nem nos anos que se seguiriam. Lembro-me dele no portão aqui de casa uma ou duas vezes, mas bem sei que ele o fez por eu tanto ter insistido. O tempo passou (é, ele sempre passa...). O Tião se casou e nunca mais o vi. Nem telefonema, nem carta, nem e-mail, nem nada. Às vezes pergunto dele para o “Renatim”, sobrinho dele, com quem jogo futebol aos sábados à tarde. Ironia do destino: o Renatim sempre se lembra de mim (eu fui professor dele ano passado) e passa aqui em casa para irmos jogar futebol. Em outras palavras, ele faz o que o tio dele nunca fez. O Gordo não tem ensino médio, não tem nível superior nem tampouco qualquer diploma. O Gordo não tem dinheiro, não convive comigo diariamente e, portanto, eu não faço mais parte da vida cotidiana dele. Ainda assim, o Gordo é o único que vem visitar-me aqui em casa. É o único que tem se lembrado de mim como amigo nos últimos 18 anos. Em nossa vida, é preciso saber diferenciar os amigos de verdade, como o Gordo, dos colegas que passam por nossas vidas, como o Tião passou pela minha. Este post é uma homenagem simples, porém muito sincera, a este meu grande amigo, o Gordo. É também uma forma de mostrar a todos aqueles que lerem esta mensagem que a amizade verdadeira não depende de dinheiro, nem de diploma, nem tampouco da convivência cotidiana. Depende apenas do respeito e da consideração entre duas pessoas. E o mais importante: a amizade não se apaga com o tempo.

Enquanto isso, no passado...

Sexta-feira, 23 de junho de 2006. O dia está nublado, porém muito seco. Nuvens escuras de fumaça teimam em esconder o sol, mas não há previsão de chuva. A única coisa que precipita do céu é a fuligem da queima das lavouras de cana-de-açúcar. Diante deste clima, típico do inverno da região da Alta Mogiana, um clima de tristeza paira no ar. Papai, mamãe e eu estamos conversando na cozinha. A mamãe está lavando alguns pratos, o papai está me observando enquanto eu tomo o tradicional copo de leite de todas as manhãs. Há algo diferente eu seu olhar. Conhecendo-o como eu o conheço, sinto que ele está nostálgico. “Meu filho...”, diz ele, em tom pausado. “Eu pedi um filho a Deus e ele me enviou um do jeito que eu havia pedido”, desabafa, enquanto me abraça. Eu abraço o meu querido papai. Decorridas duas décadas e meia desde a surra que ele me deu, eu tenho novamente em meu pai o meu grande companheiro. Sinto ternura em seu abraço. A mamãe observa tudo e, embora nada diga, sinto que está feliz, mas não menos nostálgica. A mamãe sai em direção ao quarto, enquanto eu e o papai continuamos nossa conversa, lembrando fatos de quando eu era pequeno. Dentro de dois minutos, a mamãe retorna. De óculos, ela esvazia as mãos cheias de fotos, depositando-as sobre a mesa. “Olha, bem, que coisa mais linda que ele era. ..Como a gente gostava de você, filho!”, diz ela, emocionada. “Era, né mamãe? Agora eu fiquei feio e a senhora e o papai não gosta mais de mim, né?!”, digo, já aguardando a resposta de sempre. “Deixa de ser bobo, filho. É só um jeito de falar”. O papai passa os olhos sobre as fotos, deixando a saudade sair pelos poros a cada uma delas. “Nessa época a gente era feliz e não sabia...” “Olha, filho. Nesta foto você está com aquela fita nas mãos”, comenta a mamãe. A fita cassete a que ela se refere é bem antiga. Nela o papai havia registrado, com o uso de um gravador antigo que ele havia comprado por volta dos seus 20 anos, momentos muito especiais, como a “Fia” (minha irmã) cantando “Menina veneno”, do Ritchie, eu chorando, meus bisavós paternos conversando e, inclusive, o papai pedindo a mamãe em casamento (!!!!). “Nossa, bem... Se tivesse jeito de salvar o que tem nessa fita, né? Eu acho que de tão velha que ela é, ela não toca mais em lugar nenhum...”, diz a mamãe, com voz chorosa. “Mamãe, onde está a fita?”. Depois de alguns minutos no quarto, a mamãe volta com a tal fita. “Está aqui, filho”. Pego então a fita e me tranco no quarto. Abro o rádio toca-fitas, que nunca usei, introduzo lá a fita e aciono o mp3 player na função de gravador de voz. Meia hora depois, abro a porta. “Papai! Mamãe! Venham cá!”, digo, gritando por eles. A mamãe vem e fica aqui ao meu lado. O papai fica na varanda, sentado na cadeira. Um dos seus braços está dependurado no encosto da cadeira, enquanto o outro está com os cotovelos apoiadso na mesa e as mãos sustentando o queixo. Enquanto ouve, seus olhos estão voltados para o chão. Ele parece triste. “Ai, que saudade...”, suspira ele. No meio da fita, uma conversa da minha querida e saudosa tia Alice, que já não está mais entre nós. “Pois é, né? Olha só o que que é uma pessoa inteligente pra fazer uma coisa dessas!”, diz ela ao meu bisavô, referindo-se ao gravador que o papai estava usando na época. Passados quase 30 anos, cá estou com um mp3 player do tamanho de uma caixa de palito de dentes, seguindo o caminho de meu pai: registrando as passagens para lembrar daqui há vários anos. De repente, dou-me conta que meus avós também não estarão aqui daqui a algum tempo. É, papai, eu entendo quais são os motivos de sua tristeza...

Reflexões - plantio direto

Sexta-feira, 16 de junho de 2006. Já é tarde. O relógio aqui no canto do monitor acusa 1h36min. Estou cansado e amanhã tenho que acordar cedo para as aulas como voluntário lá no colégio. Ainda assim, tentarei escrever algumas linhas para me lembrar deste dia tão marcante em minha vida. Hoje completei três décadas de existência. Ao som de Caribbean Blue, da Enya, começo a pensar que estou na metade da minha vida útil. Por isso, não posso perder tempo. E é por isso que eu estou aqui, renunciando a alguns minutos de sono, para fazer algo que tanto me dá prazer: escrever. Muitos odeiam escrever; eu gosto. Vários colegas professores detestam a profissão e dizem que a trocaria por qualquer cargo público atrás de um balcão ou de uma mesa; eu não deixaria de ser professor por nada neste mundo! Ser diferente dos outros não me torna melhor ou pior do que eles. Torna-me apenas diferente. Eu sinto prazer e realização na maioria das coisas que eu faço. Acho que este sentimento vem do fato de não me sentir obrigado a ser como as outras pessoas. Cada vez mais eu me sinto eu mesmo! Acho que eu acabei encontrando minha felicidade naquilo que tanto me incomodava na adolescência: ser diferente!
1h52min. Lá dentro todos estão dormindo. Não apenas a mamãe e o papai, mas também a Fia (minha irmã) e a Clarinha, minha querida afilhada. É bom tê-las aqui conosco, mesmo que por poucos dias. É uma boa oportunidade para relembrar os velhos e bons tempos em que elas moravam aqui. e para se ter a doce ilusão de que o tempo pode voltar... Mas o tempo não volta nem tampouco estaciona. Parece que foi ontem que eu andava com a Clara pelo quintal, chacoalhando-a no colo para que ela parasse de chorar. Passou-se algum tempo e fui agraciado com uma segunda afilhada, a Bianca. E parece que foi ontem que nós fomos a Uberaba para batizá-la... Hoje ela está com um ano e seis meses e já fala de tudo! Meu Deus! Eu estou mesmo ficando velho...
Certa vez, o papai usou usou uma comparação muito válida. Ele disse que na vida nós somos como uma lavoura de cultivo direto. Neste tipo de cultivo, após a colheita, não se remexe a terra; planta-se em cima da antiga lavoura. Na ocasião, ele disse que se sentia como a velha plantação, que está fornecendo a colheita, enquanto a nova plantação (no caso, eu) está brotando. Enquanto uma vai morrendo, a outra vai crescendo. Eu estou tentando espalhar minhas sementes, para que elas possam brotar em breve. Tenho me preocupado muito no sentido de poder oferecer a minha plantação - a minha vida - para o maior número de pessoas possível. Hoje, no meu aniversário de número 30, a minha maior felicidade foi ver que as sementes que eu espalhei ao longo da minha vida, estão dando bons frutos. Foram mais de 100 mensagens no Orkut, muitas delas vindas de pessoas que eu não pensei que fossem se lembrar de mim. Amigos de infância, colegas de almoxarifado, colegas de faculdade, de tiro-de-guerra (até o próprio sargento!), amigos de pós-graduação, alunos, ex-alunos, primos e primas, colegas lá do colégio, alguns que conheci através deste blog (olha você aí, Márcio!) A todos o meu muito obrigado! O meu maior presente que eu poderia receber foi a sensação de ser especial na vida de alguém. Que esta felicidade que agora sinto, às 2h16min, possa estar comigo durante a segunda metade de minha vida útil, para que eu possa ser realmente útil na vida de alguém...

Professor de ensino médio - reencontrando a inocência

Segunda-feira, 19 de junho de 2006. 11h33min. Estou caminhando em direção à última sala do pavilhão. Lá estudam os alunos da 3ª. Série do ensino médio. O tempo de percurso é muito curto. Por isso, meus olhos percorrem o ambiente com uma certa ansiedade, como se precisassem fazê-lo dentro de um prazo estipulado. Ao longo do pavilhão existem vários coqueiros, que parecem estar sufocados devido ao chão de cimento que os rodeiam por todos os lados. As paredes estão pintadas em azul escuro até a altura de 1,50m, e de bege acima desta altura. A pintura do interior das salas de aula obedece ao mesmo padrão, diferindo apenas na tonalidade (mais clara, obviamente). Por causa de alguns vazamentos, o forro de madeira de algumas salas está apodrecendo. Não há cortinas na maioria das salas. Há, ainda, um único ventilador de teto, o que torna a situação altamente desconfortável para todos no verão. Aos olhos de professores que já passaram por aquela escola, as instalações são horríveis e os alunos são “manos”. Eu os entendo e não os repreendo, nem tampouco espero convencê-los que estejam errados. Na maioria das vezes, o fracasso que enxergamos ao nosso redor é fruto de nossas frustrações pessoais. Mas esta não é uma simples escola; é a escola onde eu leciono. E isso tem um significado maior do que qualquer pessoa pode imaginar. Afinal, é aqui onde estou tentando realizar o meu sonho de, um dia, ser um professor. À medida que meus olhos varrem as paredes recentemente pintadas, porém já repletas de marcas de tênis de alunos e rabiscos, trazendo consigo uma visão de um lugar cada vez mais familiar, eu vou me aproximando do meu destino. Lá, à porta da sala, muitos estão me aguardando. Outros alunos, por causa do frio, saem à procura de um pouco de sol. Parado à entrada da sala, eu aguardo os que estão foram passarem. “E aí, fessor, beleza?”, cumprimentam, fazendo um sinal positivo com a mão. “Firmeza!”, respondo. “Bom dia, bom dia!”, digo. Puxo então a cadeira para sentar, mas... “Gente, sexta-feira foi aniversário do professor. Vamos cantar parabéns?”. E tome “parabéns a você...” Não, eu estou muito longe de estar nervoso pela “arruaça” que está se formando. Muito pelo contrário! Estou rindo. Afinal, foi a única sala que se lembrou daquela data. Estou rindo, mas imagino que estejatambém vermelho. Maldita timidez! “...nesta data querida...” Enquanto batem palmas, corro os olhos por cada um deles. Todos estão de camisa verde, com os dizeres “Decolando para o futuro” e "Quem acredita sempre alcança!", estampados na parte frontal da camiseta. “...muitas felicidades...” Não, eu ainda não me acostumei a estas demonstrações de carinho espontâneas e desinteressadas. Por todos os lugares que passei durante estes recém-completos 30 anos de existência, eu jamais havia sido alvo de manifestações coletivas de afeto como as que eu tenho presenciado nesta escola."...muitos anos de vida.” Nas raras vezes em que vi algo similar, eu sentia que havia uma gama de interesses envolvidos e que cada sorriso distribuído seria cobrado depois, como se cada um dos dentes mostrados trouxesse consigo uma cárie de fingimento, cinismo, falsidade e egoísmo. Talvez seja por isso eu tenha, de certa forma, "endurecido" meu coração. Meu Deus, onde foi parar a inocência e a pureza dos sentimentos daquelas pessoas? Será que a inocência a que me refiro é abandonada pelos alunos quando eles concluem o ensino médio? Será que a destes alunos também ficará aqui? Será que estes alunos serão novas vítimas do consumismo e do mundo-cão que existe lá fora e deixarão seus corações serem tomados pela frieza e pelo calculismo do mundo lá de fora destas paredes? A esta altura, eu me flagro olhando para o chão. Meu pensamento está longe dali, perdido entre as idéias que tanto me incomodam. O motivo? Simples: qual será a importância de uma universidade pública em minha vida? Compensaria realmente trocar este ambiente de inocência, ingenuidade e pureza pelo ambiente “carregado” e cheio de intrigas, fingimento e de política, que me parecem ser tão constantes em uma universidade pública? Ao terminar os “parabéns”, uma das alunas toma a palavra e diz: “Professor querido, o senhor mora no meu coração! Que o senhor tenha sempre muita saúde, porque eu te adoro!”, diz uma aluna que sempre corre para me recepcionar com um abraço. Totalmente desconcertado, deixo escapar um sorriso envergonhado e a agradeço. Uma outra aluna diz: “Professor, jamais me esquecerei de você!” Agradeço-lhes pelas frases gentis e me levanto. Giz em mãos, viro-me para a lousa. Quando giz e lousa se encontram, um sorriso brota em meu rosto. Acho que já encontrei a resposta para as minhas indagações...

Professor de ensino médio - O retorno

Segunda-feira, 5 de junho de 2006. 7h42min. Acabo de desligar o carro. Estou no estacionamento aqui da escola. Pego o estojo, o apagador com a caixa de giz, os livros e o jaleco e os pressiono contra meu corpo. Jogo os pés para fora do carro; o restante do corpo vai logo em seguida. Ao ficar de pé, olho ao meu redor. A escola que deixei há um mês atrás, em virtude de problemas com a coluna, não é mais a mesma. Algumas das árvores que faziam sombra no estacionamento já não estão mais lá. Elas tiveram seus caules podados bem próximo ao solo. Em virtude do inferno, as copas das árvores que restaram vão, aos poucos, diminuindo de tamanho, deixando o chão forrado de folhas secas. O vento se encarrega de espalhar estas folhas pelo estacionamento e pelo chão de cimento que me separada da porta de entrada. Há um clima de tristeza e de solidão no ar. Aproximo-me da porta. Giro a maçaneta e... “Seu Eduardo! Que bom que o senhor voltou!”, diz um aluno, aparentemente alegre com o meu retorno. A tristeza, mais que depressa, desaparece. Meus lábios desenham um sorriso tímido, sem que os dentes fiquem expostos. Mal sabia eu que a minha timidez só aumentaria ao ser ovacionado com palmas ao adentrar a classe da terceira série. Ah, eu já estava com saudade disso tudo...

Quando amanhã pode ser tarde demais

(carta escrita em 30/03/05; noite em que meu pai foi submetido a uma cirurgia para remoção de um câncer maligno no rim direito).
Querido papai, A última coisa que eu queria neste momento era estar escrevendo esta carta, mas, tendo-a escrito, o que mais desejo neste mundo é que o senhor possa lê-la. De alguma forma, sei que o senhor está sentindo o nosso sofrimento e angústia neste momento tão difícil para todos nós, mesmo estando há quilômetros de distância. Não sabemos onde o senhor está neste momento nem tampouco qual é o seu estado de saúde. A apreensão que toma conta de nós neste momento é indescritível. A Fia acaba de ouvir a voz do senhor chamando por ela, como se fosse um mau presságio do que possa estar por acontecer. Eu disse que poderia ter alguém lá fora e pedi-lhe para fechar a porta. Tentei demonstrar uma calma que, de súbito, sumiu quando eu senti um vazio dentro do peito. Agora, neste momento, em frente ao computador, as lágrimas brotam dos olhos e eu não consigo contê-las. Talvez o mais sensato neste momento fosse rezar e dormir, mas estou com muito medo da notícia que vão nos dar amanhã de manhã. Não consigo ordenar meus pensamentos, está tudo muito confuso na minha cabeça. E choro, apenas choro, e vou digitando o que me vem à cabeça, na tentativa de que eu desmaie quando estiver, enfim, vencido pelo sono. Acho que disse ao senhor o quanto o senhor é importante na vida de todos nós, em particular na minha. Sempre tive no senhor um modelo de honestidade e de força. Um homem sempre dedicado à família e aos filhos, sem qualquer luxo ou vaidade. Sempre trabalhou a vida inteira e desde que nascemos sempre fomos a razão da sua existência. Sinceramente, papai, nunca consegui imaginá-lo deitado em um leito de hospital, com a barriga raspada e com a mamãe chorando ao seu lado... Acho que é por isso que estou com tanto medo neste momento. Nunca achei que fosse passar por isso, mesmo sabendo que nesta vida tudo é possível. A verdade é que eu passo muito tempo na frente dessa merda de computador e tenho tirado pouco do meu tempo para conversar com o senhor. E agora se a gente não puder voltar a conversar??? E se eu não puder mais pegar o pegador de macarrão e ir brincar com o senhor? A rede está balançando, mas está vazia. Que falta o senhor faz roncando dentro dela... Que saudade dos gritos que o senhor dava conosco e com a mamãe... Mas eu sabia que, enquanto o senhor estivesse gritando é porque o senhor estava bem. Sempre foi assim, não é mesmo? O jeito bravo e alto de falar. Para mim o senhor nunca precisou falar duas vezes. Aliás, bastava olhar para eu ficar me borrando de medo, principalmente após aquela surra de corda que o senhor aplicou às minhas perdas e traseiro lá em Quirinópolis... Durante muito tempo eu condenava o senhor por ter me espancado daquele jeito, sem motivos mas, conversando com o senhor, eu entendi quais foram os verdadeiros motivos daquela surra. O mais engraçado é que, após colocar-me no lugar do senhor, eu lhe dei razão... Sempre gostei, desde criança, de ficar junto com o senhor. Uma das situações que mais me marcaram na adolescência foi aquele dia em que fomos quebrar cupins lá na fazenda da vovó, lá em Quirinópolis. Naquele dia eu senti que nós éramos grandes companheiros, um ajudando o outro. Mas o tempo foi passando e o senhor foi apenas dando ordens e eu, à medida que fui crescendo, fui começando a me afastar... O senhor não parecia querer ser mais meu companheiro e sim meu patrão... Mas sei que, algum dia, vou entender tudo isso, quando também for pai. É, papai, preciso lembrar-me destes momentos passados para distrair-me e tentar esquecer o presente. Até meus ouvidos estão entupidos, de tanto tentar conter o choro. Não posso chorar alto, pois a Fia vai ficar desesperada quando me vir nesta situação. Logo ela, que sempre me chamou de frio e calculista. O desespero dela vai ser imediato, por isso preciso ser forte. Papai, ainda tem muitas coisas que eu quero lhe falar, mas muitas delas são difíceis de se dizer pessoalmente. Que bosta, eu dou aula para mais de cinqüenta alunos em uma sala de aula e não consigo expor o quanto gosto do senhor... Eu recebo muitos e-mails dizendo que a gente deve dizer àqueles que bem queremos o quanto os amamos, mas eu sempre fico deixando isso para depois. E agora, papai, vejo-me traído pela minha arrogância e prepotência por ter deixado sempre para amanhã... E se eu não tiver mais como lhe dizer isso??? Meu Deus, de novo essa possibilidade sombria perturbando minha cabeça!!! Desculpa, papai, mas eu prefiro pensar que sábado o senhor e a mamãe estarão de volta e nós estaremos todos juntos e felizes novamente. E aí nós poderemos “mimar” o senhor nos próximos três meses. Não, papai, nós ainda tem que dar muita risada e vivermos muitas coisas juntos. Porque eu te amo, papai. E eu não conheço ninguém que chora quando fala do pai. Não conheço nenhum colega que tenha tido um pai tão marcante quanto o senhor é pra mim. E é por isso, papai, que eu preciso que o senhor volte para casa para dizer-lhe isso pessoalmente. Amanhã de manhã sei que receberemos uma boa notícia. Que o senhor acordou da anestesia e que está tudo bem. Vou rezar e pedir para que Deus espere mais um pouco e dê a todos nós uma segunda chance. Sei que Ele vai me ouvir. A gente se fala no sábado, papai. Eu amo muito o senhor e espero nunca mais ter que escrever isso com tantas lágrimas nos olhos, no rosto e no coração. Seu eterno filho, Dado

A queda de um anjo

Domingo, 28 de maio de 2005. 22h18min. Estou em meu quarto, tentando corrigir a dissertação de mestrado de um aluno da USP de Ribeirão Preto. Será a primeira vez que serei membro de uma banca examinadora... Há muitas correções a serem feitas. Aliás, eu tenho milhões de coisas para fazer, e muitas delas tomam minha atenção neste momento. É verdade, concentrar-me está sendo uma tarefa muito difícil. Afinal, a contragosto, deixei a Débora em casa mais cedo por causa das coisas que tenho que fazer, Ainda bem que ela é compreensiva... A mamãe e o papai estão lá dentro, dormindo. Estou preocupado com o papai, pois ele está há semanas com uma tosse que não quer curar. É uma tosse seca. A mamãe me contou que ele arregala os olhos quando começa a tossir, de tal forma que se tem a impressão que ele vai perder o fôlego. Quando cheguei em casa, há pouco mais de uma hora, encontrei os dois no quarto. A mamãe estava sentada, com os cotovelos nos joelhos, olhando para o chão. Parecia desanimada. O papai estava deitado de lado, com um olhar triste e distante. “O que foi, mamãe?”, perguntei, com certo ar de preocupação. “Seu pai está com medo de dormir e se sufocar quando começar a tossir”, responde ela, aparentemente exausta e desanimada. Sem ter muito que fazer (pelo menos nada que possa resolver esta situação), eu vim para o meu quarto tentar corrigir a dissertação. Pra falar a verdade, com tanta coisa pra pensar, não está sendo nada fácil... Eis que, de súbito, ouço um enorme barulho. Tiro os olhos do monitor por um instante. “Deve ter caído alguma coisa ali na oficina”, penso, lembrando-me que as coisas sempre caem na oficina do tio “Bixim”, aqui no terreno ao lado. Quando penso em tentar concentrar-me na correção da dissertação, ouço um grito de horror da mamãe, vindo lá de dentro de casa: “Filho do céu! Seu pai caiu da cama!” Como que por instinto, eu abro a porta do quarto e destranco a da cozinha e corro em direção ao quarto. Lá, no chão do quarto, próximo à parede, está o papai, sentado. O criado-mudo está encostado à parede, a cama está fora do lugar. Minha primeira reação é perguntar se ele melhorou. Sua resposta demonstra que ele está meio sonolento, ou talvez fora de si. Penso, então, na possibilidade dele ter batido a cabeça no criado. “Papai, o senhor se machucou?”. Como resposta, ouço apenas alguns grunhidos de sono, idênticos à resposta anterior. Preocupado em vê-lo no chão, penso então em erguê-lo e colocá-lo na cama. Abraço-o pelas axilas e tento levantá-lo. Imediatamente sinto uma fisgada na coluna. É, eu sei que não tenho uma coluna saudável para um esforço hercúleo com este, nem tampouco sou tão forte para erguer os 118kg de meu pai, mas nessas horas de apuros a gente tem que tentar. Aos poucos, ele vai se apoiando e, após muito esforço, consegui fazer com que ele se sente na cama. Com um dos cotovelos apoiados sobre uma das coxa, ele leva uma das mãos à testa.. “Papai, o que o senhor está sentindo?”, insisto. Sua resposta vem na forma de lágrimas. Caramba, eu não me lembro de ter visto o meu pai chorando antes! As lágrimas vão escorrendo. Curiosamente, eu acho que sei por que ele estão tão triste... Olho para ele. Aqui, diante de mim, está o meu pai. Sentado na cama, diante de meus olhos, eis o homem que me tornou o que sou hoje, aquele que moldou minha personalidade. Um homem de 54 anos, de cabelos grisalhos, que já passou poucas e boas para criar a mim e à minha irmã. Um homem trabalhador, que nunca teve preguiça nem medo de serviço pesado. Um homem honesto e, acima de tudo, honrado. Um homem que sempre deu a vida por nós. Sento-me ao seu lado e o abraço. Também estou chorando. Eu compartilho da dor dele. Nós dois sabemos que os anos se passam e levam consigo nossa saúde e nossa força. Causa muito sofrimento ao meu pai enxergar que aquele homem que levantava 60 kg com o braço esquerdo, sorrindo, agora mal consegue parar de pé... E a mim também...Abraçado a ele, eu também choro. Um enorme sentimento de incapacidade me abate neste momento.
Tentando segurar o pranto, ouço a mamãe dizer para eu ir me deitar, que o papai precisa tentar dormir para descansar. Enxugando as lágrimas, volto então para o meu quarto. Lá encontro a maldita dissertação, aguardando para ser corrigida. Como que em uma atitude de revolta, arranco o cabo da tomada e me deito. Por alguns segundos, fico olhando para o céu. Penso no quanto somos pequenos e frágeis. E choro. Choro aos soluços. Apago a luz. Fecho os olhos, mas o sono não vem. Talvez o sono venha após algum tempo. Agora, mais do que nunca, eu desejo que o tempo passe.

Lembranças da universidade - parte 1

Quarta-feira, 17 de maio de 2006. 19h15min. Estou na universidade, caminhando pelo corredor em direção à sala de aula. Ao meu lado, conversando comigo, está nada mais, nada menos que o meu amigo Toni. O Toni era o professor que eu mais idolatrava no primeiro ano de graduação e, certamente, foi um dos que mais guardo lembranças positivas. Afinal, ele era o professor mais humano que nós tínhamos, aquele que parecia realmente preocupar-se conosco. Fico observando enquanto ele caminha. A cada cinco passos ele é interrompido por um aperto de mão ou um abraço. Quando isso acontece, eu me afasto um pouco e fico observando, rindo. Meu sorriso tem um ar de admiração por aquele ser humano ímpar. Afinal, enche os olhos ver como ele é adorado e, mais do que isso, como ele não mudou sua personalidade desde que o conheci. Parece até uma ironia do destino que agora, passados 11 anos, ele e eu sejamos colegas de profissão...
Quando nos vemos a sós, conversando enquanto caminhamos, ouço seus conselhos: "Miller, não tem como você separar o aluno da pessoa. Da mesma forma, o aluno não separa o professor da pessoa. Por isso, não se deve nunca ser arrogante". Eu ouço com atenção. Na verdade, sempre segui os conselhos que ele me dispensou. Finalmente, achegamos ao terceiro andar do bloco azul, despedimo-nos e fomos cada um pra a sua sala de aula.
Na porta da sala, uma aluna me aborda. "Você é o professor Miller? Eu gostaria de fazer iniciação científica com você". Lisonjeado, marco um horário para amanhã de manhã. Ao adentrar a sala, uma aluna pergunta: "Professor, o que aconteceu? O senhor sumiu do MSN!" Dou um sorriso, um tanto que amarelado de vergonha, e começo a aula. O assunto da aula? Ressonância. É um tópico um pouco complexo, mas eu me esforço ao máximo para simplificar. Durante a explicação, faço uma pergunta básica sobre o assunto do bimestre anterior. A maioria responde de maneira errada. Ensaio, então, uma risada, e comento que alguns professores me disseram, no intervalo, que aquela turma ali era "boa" de cola. Ao ouvir isso, muitos ficam ofendidos. Um das respostas, no entanto, chamou-me a atenção ao dizer: "Sabe por que todos os outros professores dizem isso? Porque é só você quem dá aulas de verdade nesta turma. Os outros professores só dão aulas nas outras duas turmas; na nossa, eles não conseguem manter a classe quieta. " Vermelho de timidez, porém muito orgulhoso, sem muito saber o que dizer, eu me viro para a lousa novameante e recomeço a explicação. Ao invés de desenhar uma forma contribuinte de ressonância, minha vontade era de desenhar um enorme sorriso no rosto, pra manifestar o meu estado de espírito naquele momento.
Como diz a propaganda do Mastercard, "Existem coisas que o dinheiro não pode comprar." E nenhum dinheiro do mundo pode comprar minha realização neste momento. Obrigado, meu Deus!

Meu amigo, o Vanderlei

Sexta-feira, 12 de maio de 2006. 12h06min. Estou no Galpão da Picanha, em Ribeirão Preto. O estômago está roncando e o filé à parmegiana que pedi não chega... Enquanto aguardo, olho à minha volta. O restaurante está lotado. A maioria das pessoas riem e falam alto. À minha frente, conversando comigo, está alguém que fala baixo e pausadamente. Sua voz é forte e imponente, dando a impressão de ser um homem alto e forte. Mas o meu amigo Vanderlei não é um homem grande e forte, pelo menos não no sentido físico. De estatura mediana (aproximadamente 1,70m), meu amigo "Vandeco" é um grande homem, com uma força de espírito sem precedentes. Passados quase 7 anos desde que o conheci, olho bem para ele. Em sua cabeça alguns fios de cabelo branco mostram que o tempo passou, mas seu caráter permaneceu intacto. Seu modo simples de se vestir e sua preocupação com a aparência também perduraram. Enquanto ouço sua voz de locutor, contando o que se passou com ele desde a última vez que falamos ao telefone, minhas lembranças da maneira que nos conhecemos povoam minha mente.
Foi em abril de 1999, na casa de pós-graduação 12. Eu havia feito inscrição para o concurso seletivo para concorrer a uma vaga à moradia, mas o resultado demoraria a sair. Diante de uma série de circunstâncias, como a falta de dinheiro e o tempo gasto nas viagens de São Joaquim até Ribeirão Preto, resolvi pedir socorro aos estudantes que lá estavam alojados, para que permitissem que lá ficasse até que o resultado da seleção fosse divulgado. Lembro-me que o representante da casa, o Angel (um argentino barbudo e cabeludo, que à primeira vista me pareceu o cantor Sting) disse-me que eu poderia ficar alojado no quarto 2, com o Vanderlei. Quando o vi pela primeira vez, cumprimentei-o com um "E aí, tudo bem?". Após uns 10 segundos de silêncio, sua resposta limitou-se a um frio e educado "oi".
Quando adentrei seu quarto, deparei-me com três camas, três escrivaninhas, uma estante de aço e um enorme guarda-roupa. Tudo ali estava ocupado. Ele, no entanto, pareceu sentir-se constrangido, como se eu tivesse invadido sua privacidade. Educadamente, pediu-me desculpas pela bagunça (embora não houvesse nada bagunçado...) e disse-me que organizaria as coisas para que eu tivesse um espaço naquele quarto. Disse que não precisava se preocupar, pois eu ficaria na casa apenas para tomar banho e dormir, mas ele permanecia firme, dizendo que era meu direito ter minha privacidade dentro daquele quarto. Enquanto ele ajeitava os livros na estante, na tentativa de liberar um espaço para mim, reparei que ali havia livros de religião, administração, medicina e Física Quântica. "Qual é a sua área?", perguntei, não agüentando de curiosidade. "Faço doutorado em Física". Aos poucos eu notaria que estava dividindo o quarto com o estudante mais culto, educado e consciente daquela casa. Tempos depois também ficaria sabendo, através do próprio Vanderlei, que a espessura de seus óculos devia-se a uma catarata congênita, que lhe privaria da visão de um dos olhos e de 70% da visão do outro. Aos poucos fui ficando admirado com a força de vontade daquele rapaz, que mesmo possuindo 30% da visão de um dos olhos, nunca demonstrou desânimo nem tampouco reclamou da vida. Nos anos difíceis que se seguiriam, o Vandeco seria para mim um verdadeiro exemplo de força de vontade, de humildade e de ser humano.
Eis aqui, diante de mim, o mesmo Vanderlei, que agora está lutando contra uma picanha com catupiry. Ele levanta o pescoço. Pára por uns instantes. Está mastigando. "Hum, meu amigo Tonhão, está muito boa esta picanha. Não quer um pedaço?" Percebo então que nada mudou. Por um instante, penso que ainda existem pessoas puras e hoestas neste mundo! Meu amigo "Vandeco", obrigado pela sua amizade!

Lembranças de um professor universitário - parte 1

Águas de Lindóia, 20 de maio de 2006. Estou na 29ª. Reunião da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) apresentando um pôster sobre o uso da espectrometria de massas para diferenciar dois eudesmanolídeos regioisoméricos. O número do meu pôster é PN-101. À minha volta encontram-se várias pessoas, mas no momento nenhuma delas está interessada nos meus resultados. Mas eu não me chateio. Afinal, esta é a minha sexta participação em congressos e sei que, na maioria das vezes, ninguém se interessa mesmo. Já estou acostumado. Penso, então, no quanto eu sofri na primeira vez que apresentei um pôster. Foi em Poços de Caldas, em 2000. Eu tinha resultados muito simples, mais ou menos como os que estou apresentando agora. Eu havia estudado muito para apresentar os resultados que eu tinha obtido e estava ansioso para que alguém me formulasse algumas perguntas sobre ele. Mas os minutos iam passando e ninguém aparecia... O mais dolorido era ver as pessoas passando e olhando o pôster de cima a baixo, com cara de desprezo (como sempre fazem!). Era como se o que eu tivesse feito não tivesse nenhum valor! Eu havia ficado tão triste e tão magoado que minha vontade era sair correndo para o apartamento do hotel onde eu estava hospedado e chorar. Eis que surgiu uma jovem. Recordo-me que estava tão distante que não vi de onde ela veio nem a que instituição ela pertencia. Recordo-me apenas que ela fez-me duas perguntas muito simples, às quais respondi com o maior prazer. Após esclarecer suas dúvidas, senti-me profundamente e divinamente aliviado. Agradeci-lhe e, virando o rosto para a direção oposta à que ela estava, olhei para um ponto perdido do chão, com um sorriso no rosto. Quando me virei para cumprimentar a moça e agradecer-lhe novamente pelo enorme bem que ela acabara de me fazer, notei que ela tinha desaparecido! Aquela jovem havia simplesmente evaporado! Eu não podia acreditar no que havia acontecido. Foi quando um sorriso brotou em meu rosto e eu finalmente enxerguei que era Deus quem havia me enviado um anjo, na forma daquela jovem, para confortar-me... Ao me lembrar disso, percebo que estou sorrindo... Ao voltar à realidade, vejo que há quatro jovens estáticos, de frente para mim, olhando para um pôster. Curioso, eu acompanho o olhar deles para descobrir para onde estão olhando. Qual seria o motivo de tanto interesse? Caramba, eles estão olhando para o meu pôster! Eis que aquele sorriso de seis anos atrás reaparece em meu rosto. Desta vez, os anjos que Deus me enviou vieram aos pares. Será que alguém vai acreditar quando eu contar isso?

Lembranças do almoxarifado - parte 8

Dizem que uma pessoa que se aproxima da morte pode ver tudo o que viveu em um minuto, como se estivesse assistindo a um filme. Embora eu ainda não tenha (graças a Deus!) passado por esta experiência, sinto-me como se estivesse vivendo algo bem parecido. Minha caminhada em direção à sala do Alceu assemelha-se à de um condenado que trafega pelo corredor da morte. Obviamente o Alceu não estará em sua sala com uma foice mortal nas mãos, nem tampouco ligará o interruptor para que a cadeira elétrica derreta meus miolos (bom, pelo menos eu espero que não...), mas o desespero que toma conta de mim neste momento é ímpar. Penso que se eu perder o meu emprego aqui na usina, terei que abandonar a faculdade, pois não terei como pagar as mensalidades. O carro, então, nem se fala! Eu bem que pedi ao papai para que ele tivesse paciência e não trocasse meu carro agora. Mas não! Mal completei o período de experiência e lá estava o papai trocando o meu carro. A intenção do papai foi boa, mas achei que ele forçou um pouco a barra ao financiar R$2.500,00 para que eu pagasse mensalmente R$300,00 dos meus R$450,00 que recebo de salário. A cada passo de minha caminhada, sinto que minha passagem pelo almoxarifado da usina está chegando ao fim. “Caramba! Por que é que eu não imprimi aquela CI? O Edvaldo com certeza teria me ajudado! Mas por que foi ele faltar justamente naquele dia? E por que é que o Jaime teve que ir embora naquela tarde?” Pensar nessas coincidências me deixam cada vez mais apreensivo. Mas de nada adianta chorar o leite derramado. A verdade é que eu me sento como um boi em direção ao abate, e o Alceu é o matador, prestes a golpear meu crânio com uma enorme marreta de aço... Após uma caminhada lenta e longa, avisto a porta verde de madeirite, com os dizeres: “Alceu Gonçalves – Gerente da Divisão Agrícola” “É, agora já era. Seja o que Deus quiser!” Sem bater, giro a maçaneta da porta e adentro a sala. “Com licença, Alceu.”, digo, tentando simular um ar de segurança. Como de costume, ele responde de forma bem direta: “Fala, Antônio. Qual é o problema?”, diz ele, já olhando para a nota. “Deus do céu! Ele já notou!”. Sinto-me gelado. “Ah, que se dane!”, penso. “Alceu, essa nota aqui... A gente precisa devolver esta peça. Aqui está a C.I. pra você assinar. Sem ela o Natal não emite a nota de devolução.” Ele então lê a C.I. atentamente. Passa os olhos de cima a baixo. Em seguida, fixa os olhos na nota. “Pronto! Eu já era!”. Ele então levanta os olhos em minha direção. Os poucos segundos que se seguem parecem uma eternidade! “É o seguinte...”, diz ele, já com expressão séria. “Deus do céu! Ele lembrou! Agora vai detonar comigo!”. Mas para minha surpresa... “A nota que você precisa anexar aqui tem que ser a primeira via, e não a segunda. Vou assinar, mas você vê se vai lá no setor contábil e consegue a primeira via!”. Aliviado, eu respiro fundo. “Pode deixar, Alceu. Vou providenciar isso agora mesmo!”. Dou meia volta e sigo em direção a porta. Ao fechá-la, sinto vontade de sair gritando de alegria. Pois é... Às vezes não perder também pode ser uma grande vitória...

Lembranças do almoxarifado - parte 7

Se eu tivesse inimigos, juro que não desejaria ao pior deles que estivesse na situação em que eu me encontro neste momento. Após ser pisoteado pelo Alceu na sala do Edvaldo por causa do maldito “braço da roda da enleiradeira DMB”, que o Jaime acabou dando entrada no estoque no código do “cubo da roda da enleiradeira DMB”, eu passei a odiar a tal enleiradeira e qualquer outro implemento que essa tal de DMB possa vir a fabricar. Eu me encontro em pânico neste momento. Olho para a prateleira, onde se encontra a maldita peça. Lembro-me que ela devia ter sido devolvida há uma semana, conforme o Alceu exigiu, e juro que tenho vontade de chorar... Ao adentrar no recebimento, o João (a quem apelidamos de Joãozinho ou “João três quartos”, por causa do tamanho dele...) me vê sentado na cadeira, desconsolado, e logo se aproxima para ver o que está acontecendo. Com a mão no meu ombro, ele diz: “Jeromão, o que é que está acontecendo? Vai, se abre pro seu amigo aqui”. Ao notar que está fazendo mais uma de suas brincadeiras, eu sorrio educadamente ao invés de mandá-lo para um lugar bem longe. Estou em uma situação delicadíssima e ele ainda vem fazer uma brincadeira dessas comigo... Mesmo assim, eu insisto no diálogo. “João, lembra daquela peça que o Alceu pediu pra devolver semana passada?”. “Sim, eu lembro. Ela já foi devolvida, não foi?”, responde ele com outra pergunta. “Eu olho fixo pra ele, com cara de desânimo. “Não, ainda não”. Imediatamente ele manda as duas mãos à cabeça, em sinal de desespero. “Jeromão do céu! Cê tá ficando doido, hômi?”, diz ele com o sotaque caipira que em tantas outras ocasiões tanto me fez sorrir. Desta vez, incapaz de sorrir diante de tão tensa situação, eu tento manter o diálogo. “João, o que é que eu faço? Pra fazer a devolução eu preciso que o Alceu assine uma CI para a balança. Se o Alceu me vir na sala dele com uma CI que deveria ter sido expedida uma semana atrás, eu estou na rua!”. Ao ouvir isso, o João endurece a expressão e, finalmente, assume um tom de discurso mais sério. “Tonhão, o negócio é o seguinte: a gente tem que assumir os erros da gente. O que aconteceu foi uma falha de sua parte, e assim como você assumiu a falha de ter recebido a maldita peça, precisa assumir também mais esta falha. Isso pode acontecer com todo mundo.” E colocando novamente a mão sobre meu ombro, diz: “Vai lá, mostra a CI para o Alceu e pede a assinatura dele. Se ele questionar, você explica de novo, e pronto. Pelo menos o Alceu verá que você está assumindo sua falha”. Aquelas palavras conseguem me acalmar e me trazem fôlego para mais uma última investida, que pode ser a minha última como funcionário do almoxarifado... Peço então ajuda ao Jaime, que a esta altura pede desculpas por ter esquecido de digitar a CI na quinta-feira e a imprime rapidamente. Assim que a CI termina de ser imprimida, anexo uma cópia da 2a via da nota e parto em direção ao Setor de Planejamento e Custos, onde fica a sala do Alceu. Quando fecho a porta da sala do Edvaldo e me aproximo da sala do Valdir e da Gislene, que também pertencem ao mesmo setor do Alceu, olho para o estoque. De lá, olhando pelo vidro encontram-se todos os colegas de almoxarifado. Penso então em duas possibilidades: ou estão torcendo por mim ou estão me comparando a alguém que caminha pelo corredor da morte. De fato, estes minutos estão sendo muito tensos... Ao dobrar à esquerda, passo em frente ao Departamento Pessoal, onde vejo dezenas de pessoas fazendo testes de admissão. A seleção é uma verdadeira peneira e a concorrência é grande. Só então me dou conta de como foi difícil ingressar aqui na usina. Em meio à crise de emprego que o país atravessa, e precisando ganhar dinheiro para pagar a faculdade, posso dizer que sou privilegiado estar empregado e de pertencer a um setor onde só há pessoas legais. A sala do Alceu é no final do corredor. Será que quando sair de lá ainda serei funcionário da usina?
(to be continued...)

Lembranças do almoxarifado - parte 6

Quarta-feira. Eu realmente estava encrencado. Ao deixar a sala em que o Edvaldo trabalhava, após ouvir (e ver...) o Alceu falar comigo de uma forma tão desrespeitosa que alguém jamais havia falado antes, nem mesmo o papai, eu me encontrava sem saber o que fazer. Juro que se fosse fora da usina e se a pessoa que tivesse dito aquelas palavras tão ríspidas não fosse meu superior hierárquico, eu teria saído na porrada. “O que aconteceu?”, perguntaram o Caio e o Zé Luís. Não, eu não estava com paciência para explicar. Era preciso ficar sozinho para colocar as idéias no lugar. Precisava elaborar um plano para sumir com aquele maldito braço da roda antes que ele fosse a última lembrança que me restasse do almoxarifado... Dirigi-me então para o fundo do almoxarifado, onde o seu Boné costumava sentar-se para almoçar. Ajeitei-me então naquilo que o seu Boné chamava de banco e ali permaneci durante alguns minutos. Olhava para o chão e não via nada além da poeira e dos “fagulhos” de cana. Respirei fundo e olhei para cima, na esperança que Deus me enviasse um sinal, mas visualize momentaneamente apenas as telhas empoeiradas do tipo “eternit”. De repente, uma idéia fez ressurgir as esperanças. “Vou perguntar para o Jaime. Claro! Meu Deus, como não pensei nisso antes?” O Jaime é um excelente amigo. Está sempre sorridente e é a pessoa mais camarada do nosso setor. No entanto, no que se refere a normas e procedimentos, eu procuro evitar ao máximo procurar-lhe, pois ele já recebeu algumas advertências e um “gancho” por alguns deslizes que cometeu na digitação de notas e no recebimento de peças. A pessoa mais confiável para orientar-me seria o Edvaldo, mas como ele teve que ir embora mais cedo, o Jaime é minha única opção. Aproximo-me dele, um pouco ressabiado. Ele já sabe do que vou falar. No entanto, enquanto eu lhe explico a grande encrenca em que me meti, ele sequer tira os olhos das peças que está conferindo, agachado no chão verde do recebimento. Eu não o censuro, pois bem sei que a situação dele após o último gancho que levou não ficou nada boa perante o Alceu. Um outro ponto que o deixa muito chateado é o fato de eu sempre ter recorrido ao Edvaldo para esclarecer minhas dúvidas com relação ao recebimento, ao invés de procurá-lo. Sinto que ele acha que eu não confio nele ou que eu que ele não sabe fazer o serviço. Embora ele esteja parcialmente equivocado com relação ao que eu realmente penso, eu evito tentar convencê-lo e limito-me a perguntar o que devo fazer para devolver a maldita peça. “Vai na oficina, pega o código certo no catálogo com o ‘Sebim’ e escreve ele no pedido para mim alterar. Depois digita uma correspondência interna para o Natal da Balança solicitando a emissão de uma nota de devolução e leva a CI para o Alceu assinar. Sem a assinatura do Alceu o Natal não emite a nota.” Embora parecesse muita coisa a ser feita, o que mais me preocupava naquilo tudo era elaborar a tal CI para coletar a assinatura do Alceu. O fato de ter que ficar cara-a-cara com o Alceu novamente me desagrada profundamente... Quinta-feira. Hoje cheguei no almoxarifado disposto a resolver aquela situação que havia me tirado o sono na noite anterior. Às 9h eu já estava com a primeira parte concluída, ou seja, já havia confirmado o código da peça no catálogo com o Luís Carlos (o “Sebim” a quem o Jaime tinha se referido, que é encarregado da oficina mecânica agrícola...) e marcado no pedido as alterações que precisavam ser feitas. Faltava agora o mais complicado: a maldita CI... “E agora, Jaime?”, perguntei a ele mostrando as alterações que eu havia marcado no pedido. Sua reação mostrou-me que ele estava feliz por eu estar pedindo ajuda a ele. “Deixa a nota ali em cima da mesa que eu faço a CI pra você. Eu já tenho o modelo pronto no computador, depois eu digito pra você”, ao que eu prontamente expressei minha gratidão através de um “Valeu Jaime!”. Um pouco mais calmo, deixei a nota em cima da mesa dele, próxima ao computador, e voltei aos trabalhos rotineiros de conferência de peças. Durante toda a manhã notei que o Jaime estava trabalhando em um ritmo acima do normal. Conferia as peças, marcava os códigos e imediatamente as colocava nas prateleiras. Confesso que o ânimo dele me contagiou, fazendo com que eu também “engatei uma quinta marcha”. Às onze horas, horário em que eu ia almoçar, restavam poucas peças a serem conferidas. A manhã havia sido muito proveitosa. Após o almoço, senti a ausência do Jaime, mas deduzi que ele tivesse saído atrás dos mecânicos para conferir as ferramentas de suas caixas de ferramentas. Esta era uma tarefa que ele havia dito que precisava fazer há muito tempo, e que o Edvaldo sempre o ficava lembrando. “Enquanto ele faz isso, eu vou terminado de conferir essas mercadorias aqui”. Às 16h não havia mais nenhuma peça a ser conferida. Mas a maldita nota ainda estava sobre a mesa do Jaime. “Caio, cadê o Jaime?”, pergunto. “O Jaime?”, responde o Caio, agachado entre as duas prateleiras de material elétrico, sempre vestindo a camisa azul do uniforme da empresa e com sua caneta Bic acima da orelha. “É, Caio, o Jaime”, respondo educadamente, mas com uma paciência já bem abatida... “Ah, o Jaime foi ao médico na parte da tarde e não volta hoje, não. Ele não te falou?”, responde ele, esboçando uma certa surpresa. A notícia que o Caio acabara de dar-me era uma verdadeira bomba, pois amanhã eu irei viajar para Quirinópolis, no Estado de Goiás, onde fui criado, e voltarei só na terça-feira! Não posso perder a viagem, mas também não posso arriscar perder o emprego. O que fazer? Explico a situação ao Caio, e ele se mostra pronto a ajudar. “Não, Toim, fica tranqüilo. Deixa anotado na mesa dele que amanhã eu lembro ele de fazer a CI pra você”, disse ele, prontificandoo-se a “quebrar um galho” para mim. Diante das palavras do Caio eu fico mais sossegado e consigo ir para casa bem animado, só pensando na viagem de amanhã. Terça-feira. Hoje é dia de voltar ao trabalho. Após 4 dias ausentes do almoxarifado, eu volto com o ânimo renovado. Aproveitei bem os dias que passamos em Quirinópolis. Reencontrei muitas pessoas que fizeram parte de minha infância, pude voltar ao lugar onde eu morava (hoje só resta o alicerce...). Aproveitei também para descansar bastante. Quando adentro o recebimento, logo no início do expediente, olho para a prateleira vermelha onde colocamos as peças de não-conformidade e fico petrificado. Sobre ela repousa, em cor alaranjada, o maldito braço da roda que eu precisava devolver! Sobre a mesa ainda está a maldita nota, do jeito que deixei para o Jaime fazer a CI... Em outras palavras, a peça que o Alceu exigiu que fosse devolvida ainda está na prateleira do almoxarifado, uma semana depois..Meu Deus, e agora?
(to be continued...)

Lembranças do almoxarifado - parte 5

Já ouvi alguém dizer, ou li em algum lugar, que a gente nem sempre faz tudo o que gosta, mas que é necessário gostar daquilo que a gente faz. Não há, no momento, uma frase melhor para explicar o que sinto. Com o Danilo e o José Luís trabalhando no balcão, eu acabei sendo “premiado” para trabalhar com o Jaime no recebimento. Não, o problema não é trabalhar com o Jaime (que, aliás, é um colega de serviço e tanto!) e sim lidar com as notas fiscais. É preciso conferir as mercadorias em tempo hábil, para que as notas sejam encaminhadas ao setor financeiro para que possam ser pagas dentro do prazo. E isso, convenhamos, não tem sido uma tarefa das mais fáceis. Mas tenho que me acostumar. Afinal, preciso do dinheiro deste emprego para poder terminar minha graduação. Com o Edvaldo sobrecarregado com os pedidos de estoque e com os mais urgentes, que chegam a todo instante em suas mãos, a codificação e a digitação das notas fiscais também passaram a ser função do setor de recebimento. Na verdade, esta tarefa ficou mesmo para o Jaime, já que eu, para evitar tamanha responsabilidade, prefiro conferir as mercadorias e colocá-las nas prateleiras. Para conferir as mercadorias, basta comparar as especificações do pedido com a mercadoria que foi enviada pelo fornecedor. Alguns fornecedores fornecem peças de qualidade inferior, mas que ainda assim são rotuladas por eles como “originais”. Outros fornecedores fornecem as peças “genuínas”, que são realmente originais e vêm acondicionadas em embalagens que contêm o símbolo da marca (por exemplo, Scania, Massey Ferguson, Caterpilar etc.). As peças de reposição genuínas são geralmente enviadas por fornecedores autorizados e dificilmente são equivocadas. Eis que há alguns meses atrás chegou ao nosso almoxarifado uma peça cadastrada em nosso estoque como “cubo da roda da enleiradeira de palha DMB”, seguido do número de catálogo. Contudo, o fornecedor havia enviado o “braço da roda da enleiradeira de palha DMB”. Conforme os procedimentos da empresa, fui até o setor de compras conversar com o comprador responsável – o Rogério, que é genro do dono da empresa. Muito gentilmente, o Rogério ligou até o fornecedor, que nos esclareceu que a peça que nos foi enviada corresponde ao número que consta em nosso cadastro, e não ao nome. Em resumo: o código de nosso cadastro não correspondia ao cubo da roda, e sim ao braço. Diante deste erro que há tempos constava em nosso cadastro, o Rogério disse que a devolução não poderia ser feita, pois o erro era “nosso” (no caso, do nosso cadastro). Ao chegar no Almoxarifado, troquei imediatamente o código do cadastro no pedido, para que o Jaime pudesse dar a entrada da mercadoria no estoque no código correto. Foi numa quarta-feira, 16 h. Faltavam apenas 1 h para terminar o expediente quando o Joãozinho me chamou e disse que o Alceu queria conversar comigo na sala do Edvaldo. O Alceu era, nada mais nada menos, do que o nosso superior direto. Aquilo me trouxe um mau pressnetimento, pois nas poucas vezes que nos vimos, trocamos apenas cumprimentos breves, porém nenhuma palavra. O que eu sei sobre ele vem da boca de outros funcionários. Dizem que ele é muito ríspido com as palavras (beirando a “falta de educação”) e que não aceita erros de seus subordinados. Corre pelos "bastidores" que em uma conversa informal, ele havia dito a um de seus colegas: “Trabalho para o Dr. Luís (o dono da empresa) há quase 25 anos. Neste período, perdi mais ou menos umas vinte amizades, porém estou em um cargo que me satisfaz e ganho um salário que tme satisfaz.” É lógico que eu fiquei muito assustado quando me contarem esta história, mas eu preferi pensar que aquilo era uma "lorota" e procurei ver na pessoa do Alceu uma pessoa alegre e bem-humorada, de quem nós podemos exigir melhorias para o setor do Almoxarifado. Mas o Alceu que estava ali diante de mim não estava sorrindo. Aquele homem de cabelo curto, rosto vermelho de sol, a barriga projetada à frente e incontida dentro das calças, vestindo uma branca com listras pretas na vertical, com um ar de quem estava se contendo para não explodir, mostrou-me uma nota fiscal e exigiu explicações. “Tõim, me explica o que é que está acontecendo com esta nota." Desconhecendo do que se tratava, eu analisei a nota e dentro de 2 min dei a resposta. Esclareci que nossas especificações de estoque estavam equivocadas e tivemos que “engolir” esta peça. Sua expressão, então, endureceu ainda mais. Veemente e exaltado, em tom agressivo e cada vez mais vermelho, ele dá um soco de punho fechado na mesa e dispara: “Se você quiser, fique com esta peça, pode levar. Coloque-a na sua bicicleta, no seu carrinho de “rolemã” ou onde quiser. Mas eu não quero nem saber. Para mim ela não “serve’”. Amanhã eu não quero mais ver esta peça aqui na empresa, você está me entendendo?"
Assustado e muito triste, eu assistia aquele homem de origem humilde, a quem eu estava aprendendo a admirar, a dar provas concretas de que o que diziam sobre ele tinha fundamento. Cabisbaixo e abatido, eu saí da sala disposto a sumir com aquela maldita peça antes que ela me custasse o meu emprego...
(to be continued...)

Lembranças do almoxarifado - parte 4

Trabalhar aqui no almoxarifado não tem sido nada fácil. Além do cansaço que sinto por ficar estudando até altas horas da madrugada, há muito serviço a ser feito. Todo mundo aqui tem se desdobrado, mas estamos chegando à conclusão que somos poucos para a quantidade de serviço que temos que fazer. Para trabalhar aqui no balcão, contrataram o José Luís. Trata-se de um homem muito magro (o Edvaldo o chama de “seco”), cuja idade aparenta aproximar-se dos 40 anos. Antes de trabalhar aqui conosco, lembro-me que ele trabalhava na Compeças, junto com o Henrique. O papai comprava muitas peças lá naquela loja, mas parece que decretaram falência da empresa. O José Luís tem sido um bom colega de trabalho. Sempre sorridente e muito humilde, ele não tem vergonha de perguntar quando não sabe. Estamos nos dando muito bem. Além disso, adora tirar um sarro na moçada. O Danilo, que havia sido contratado para trabalhar com o Jaime lá no recebimento, agora está trabalhando conosco aqui no balcão de atendimento. Não sei bem o que ele andou aprontando por lá, mas deve ter feito alguma besteira e acabou levando uns “ganchos” (assim chamamos as suspensões) e sendo transferido aqui para o balcão. Com isso, estamos em quatro pessoas aqui e o Jaime voltou a ficar sozinho lá no recebimento. Dias atrás a empresa contratou um rapaz para trabalhar com o Jaime. Seu nome é André. Ele é filho de um ex-administrador aqui da empresa. Nós somos quase vizinhos. Quando éramos moleques, brincávamos juntos aqui na nossa rua. Apesar disso, poucas vezes eu tive oportunidade de ir à casa dele, pois a família dele é bem mais provida em termos financeiros que a minha. Isso fica evidente, por exemplo, na maneira de nos vestirmos. Eu visto calça jeans. Aliás, tenho apenas duas. Normalmente eu trabalho com a mesma calça uns dois dias seguidos. Eu costumo usar um jaleco azul para evitar que as coxas se sujem demais. Já o André... Ele chega todo dia muito bem perfumado, calçando botina de couro (ou seria botas?) e camisas de manga comprida. Caramba, eu não tenho nenhuma dessas camisas, nem pra sair aos sábados... Todos aqui no setor tem achado o André muito quieto e “metido”. Eu já percebi que o Jaime está de olho nele, talvez para “batizá-lo”, como fez com o Danilo. Eu acho melhor o André ficar esperto... São 11h30min. Acabei de retornar do almoço. Como uso fazer de costume, pego os papelões (na verdade, são pedaços de caixas velhas, onde as mercadorias vêm embaladas) e os sacos de limpeza e dirijo-me ao corredor que fica entre as prateleiras S e T. Eu forro o chão, que deve ter uns dois dedos de poeira, e acomodo os sacos para que eu possa deitar-me de barriga para cima. Não é nada confortável dormir nesta posição, mas o que é que eu posso fazer? Depois do “batismo” do Danilo, eu decidi tomar todas as precauções para não ser o próximo “afilhado”. Ouço alguns passos. Alguém está se aproximando. É o André. “Tonhão, eu posso deitar nesse corredor aí?”, pergunta ele, também demonstrando a intenção de tirar um cochilo pós-almoço. “Claro, fique à vontade”, respondo. Ele, então improvisa um forro e se deita, também de barriga para cima. No entanto, noto que ele retirou suas botinas. “Cara, eu tenho um calor nos pés!”, justifica ele. Por mim tudo bem. Eu só espero que ele não se arrependa, pois aquelas duas botinas soltas pelo corredor são um prato feio pras brincadeiras que o Jaime sabe fazer. São 12h. O sinal da oficina bate, comunicando aos desavidados que é hora de voltarem ao trabalho. Eu fico deitado, como que imobilizado pela preguiça e pelo cansaço. Nem sequer abrir os olhos eu abri. Enquanto isso, ouço o André se levantar do papelão. “Tonhão, cadê as minhas botinas?”, braveja o André, achando eu sou culpado pelo desaparecimento de suas botas. “Sei lá, André. Eu acordei depois de você”, respondo. Ao olhar para os pés dele, avisto meias branquíssimas. Ainda deitado, consigo identificar, por trás das prateleiras, o Jaime, o Edvaldo e o José Luís rindo. “Mas o que é isso?”, braveja novamente o André, com um bilhete nas mãos. Mais que depressa, eu me levanto e pergunto o que está acontecendo. Ele, então, me mostra o bilhete, onde está escrito mais ou menos assim: “Seu palhaço metido, suas botinas estão na H-26”. Ouço, então, as risadas vindas de trás das prateleiras se intensificarem. Quase não acreditando no que estou vendo, avisto o André sair caminhando pelo Almoxarifado de meias brancas, tem busca de suas botinas. oDe repente, outro grito de nervosismo. “Caralho! Cadê as minhas botinas?”, grita ele, já puto da vida. Eis que lá vem o André novamente, andando de meias brancas, sem as botas, andando pelos corredores empoeirados do almoxarifado. Ele parece ter outro bilhete nas mãos, mas desta vez caminha para outra prateleira. Chegando lá, outro grito. “Que desgraça! Cadê a minha botina?”. Os risos se intensificam. Pra falar a verdade, até eu estou rindo. E o André... Bom, acho que ele é o único que não tem motivos pra rir neste momento. E lá segue ele, caminhando de meias brancas pelos corredores empoeirados do almoxarifado, com o novo bilhete nas mãos. A meia dele já era. Acho que ele vai demorar um tempo para descobrir que as botinas dele estão dentro do cesto de lixo. Este é, enfim, o batismo dele. André, seja bem vindo ao Almoxarifado Agrícola!

Lembranças do almoxarifado - parte 3

Quando fui contratado para trabalhar no almoxarifado, lá trabalhavam apenas o Jaime (no recebimento), o Edvaldo (no setor de pedidos e digitação de notas e requisições), o Miguel (no barracão de insumos) e o Caio (no balcão). No início, eu era parceiro do Caio no atendimento. Eu sentia que ele tinha uma consideração especial por mim, como se fosse filho dele (bem, idade para isso ele tinha...). Eu o via como sinônimo de eficiência e de esperteza. A agilidade dele no atendimento era algo que enchia os olhos, sem contar que ele conhecia praticamente todas as peças do estoque. Não havia uma ficha de estoque sequer que não contivesse a sua letra. Aos poucos fomos nos tornando bons amigos, e assim que ele começou a confiar em mim, passamos a dar boas risadas juntos. Quando o movimento estava tranqüilo, a gente chegava a ponto de parar no balcão para conversar com os mecânicos. Por outro lado, o clima no recebimento e no setor de pedidos, onde trabalhavam o Jaime e o Edvaldo, era um relativamente tenso. O Edvaldo quase se matava de trabalhar. Ele era incumbido de codificar as notas que o Jaime passava para ele e digitá-las. Também digitava todas as requisições de material que o Caio e eu passávamos para ele e, não bastasse, fazia também os pedidos para reposição do estoque. Com tanto trabalho para fazer, eu lamentava que ele não tivesse muito tempo para bater um papo comigo, pois eu sabia que ele era um bom amigo. Na maioria das vezes, ele ia ao estoque apenas para conferir alguma ficha de mercadoria ou para lavar as mãos antes do almoço. Era como se fosse um vulto... O Jaime (vulgo “Jacaré”) também vivia sob pressão, pois trabalhava sozinho. O seu antigo companheiro, o Carlos Henrique Caldani (então conhecido como “Mão”) havia pedido as contas pouco antes de eu ser contratado. Sendo assim, o Jaime tinha que receber as mercadorias, conferí-las, dar entrada nas respectivas fichas e colocá-las nas prateleiras, nas devidas locações. Apesar de tanto trabalho, poucas vezes eu vi o Jaime sério ou mal-humorado. Decorridos alguns meses após a minha contratação, os responsáveis pelo Almoxarifado decidiram que era preciso contratar mais uma pessoa para trabalhar com o Jaime. O aprovado no teste foi o Danilo. Lembro-me que ele tinha um ou dois anos mais novo que eu e que ele havia me tomado o meu “troféu” de funcionário mais novo do setor. Apesar da pequena diferença de idade e de também estar na universidade, matriculado no curso de Processamento de Dados, não foi preciso muito tempo para notar que ele tinha um estilo de vida muito diferente do meu. Ele bebia (e muito!) e, se não me falha a memória, fumava esporadicamente. Até aí tudo bem. Mas o que mais me espantava era o fato que as roupas que ele usava para trabalhar eram muito mais refinadas que as que eu colocava para sair nos fins de semana. Este aspecto, por si só, já era suficiente para que eu o tivesse classificado, logo no início, como “Mauricinho”. E eu odiava os “Mauricinhos”!!! Em conversa com o Caio e com o Jaime, eu notei que eles também tiveram a mesma impressão que eu. “Esse cara é muito metido. Vamos ter que batizá-lo!”, disse o Jaime, com os olhos arregalados e um sorriso no rosto. Ao ver a expressão dele, que o acusava de estar prestes a aprontar uma grande “sacanagem”, não pude conter o riso. Faltava apenas uma boa ocasião para o “batismo”. Eis que chegaram, em um único carregamento, mais de vinte caixas de eletrodo de solda. Estes eletrodos eram vendidos por quilo, mas no estoque nós entregávamos por unidade. Conclusão: o Jaime e o Danilo teriam que abrir aquelas caixas metálicas amarelas pesadas e contar todos os eletrodos, um por um... “Danilo, tive uma idéia!”, disse o Jaime. Ao ver seus olhos brilhando, comecei a rir. Aquela era a oportunidade que ele estava esperando para o “batismo” do Danilo... “Pensa comigo: cada caixa dessas pesa 5kg, não é? Se a gente souber o peso de um eletrodo, a gente faz as contas e deduz quantos eletrodos tem dentro de uma caixa dessas! Concorda?”, disse ao Danilo, que ouviu atentamente e concordou. “Então você vai fazer o seguinte: vai lá na balança e pesa esse eletrodo pra mim”, disse, entregando em suas mãos um eletrodo. E lá se foi o Danilo, com o eletrodo na mão, em direção à balança. Assim que o Danilo fechou a porta, o Jaime ficou eufórico. Mais que depressa, ele ligou para o meu tio, o Natal, que trabalhava na Balança (recepção e expedição), e explicou-lhe seu “plano de ataque”. “Pode deixar, Jacaré. Deixa comigo que aqui eu dou um jeito nele”, ouvi meu tio respondendo ao telefone, já aos risos. Embora estivesse ansioso para ver no que ia dar a brincadeira do Jaime e do Natal, eu só fui entender o que eles fizeram no ônibus, quando estávamos voltando para a cidade. Em meio a risos (às vezes ele não conseguia nem falar, de tanto rir...), o Natal nos contou que pediu para que o Danilo subisse primeiramente na balança (aquela onde se pesam os caminhões canavieiros!!!) sem o eletrodo e que depois subisse com o eletrodo nas mãos. A diferença entre as duas pesagens seria o peso real do eletrodo. Caramba, o eletrodo devia pesar gramas, mas a sensibilidade da referida balança era de toneladas!!! Por alguns minutos, os motoristas canavieiros deixaram a cabine de seus caminhões para ver o Danilo em cima da balança onde seus caminhões eram pesados, com o maldito eletrodo nas mãos... Pronto: o “Mauricinho” estava, enfim, batizado!!! Só lamentei não ter sido convidado para ser "padrinho"...

Lembranças do almoxarifado - parte 2

Já faz dezessete meses que estou trabalhando aqui no almoxarifado agrícola. No início, encontrei certa dificuldade para entender como o setor funciona e, por conseguinte, não sabia quais são conseqüências de um erro meu sobre o trabalho dos outros colegas aqui do setor. Basicamente, o almoxarifado é dividido em quatro partes: o setor de pedidos, o setor de recebimento, o balcão de atendimento e o armazém de adubos e insumos agrícolas. Caio, José Luís, Danilo e eu trabalhamos no balcão de atendimento. O Jaime e o André trabalham no recebimento de mercadorias, ao passo que o Edvaldo e o Miguel trabalham nos setores de pedidos e no barracão de insumos, respectivamente. As mercadorias que chegam ao almoxarifado ficam de “quarentena” no setor de recebimento e, após serem conferidas pelo Jaime e pelo André, seguem para as prateleiras do estoque. Cada uma das prateleiras recebe uma letra e cada um de seus “vãos” recebe um número, ao que chamamos de “locação”. As prateleiras são, em sua maioria, feitas de madeira, sendo geralmente pintadas com tinta verde escuro. Somente algumas delas são de metal. As mercadorias armazenadas nas prateleiras de metal geralmente são “miudezas”, ou seja, de tamanho reduzido. Para facilitar a vida dos que trabalham no balcão, cada uma das prateleiras armazena um tipo específico de mercadoria. Por exemplo: na prateleira A estão os retentores; e na C estão os rolamentos. Os balconistas (entre os quais eu me incluo) recebem a requisição de material e entregam o requisitado àqueles que a portam, desde que a mesma esteja devidamente assinada pelo responsável do setor. Quando a mercadoria requisitada não está disponível e há uma certa urgência, nós a assinalamos com um carimbo de “não atendido” passamos a requisição para o Edvaldo, que lhe dá preferência sobre os pedidos normais do estoque. Apesar de já estar bem familiarizado com o serviço e já conhecer boa parte das peças do estoque, às vezes acontecem algumas ocasiões engraçadas. Eis que o mecânico “Indinho” solicita em sua requisição uma peça chamada “quebra galho do afogador”. Desconhecendo esta peça e achando que estava sendo ironizado, procuro o cadastro desta peça no nosso cadastro. No entanto, não encontro nada parecido com este nome. Recorro, então, ao Caio. A experiência deste matuto tem me salvado muitas vezes de situações embaraçosas. Sim, ele é o mais velho do setor, tanto em idade como em tempo de almoxarifado. Mostro a requisição a ele, que rapidamente segue para prateleira M. Em poucos minutos ele retorna com a tal peça e a sua respectiva fichinha, para eu dar a baixa no estoque. Vejo o nome verdadeiro da peça e, inevitavelmente, começo a rir. Afinal, "limitador do afogador" não tem nada a ver com "quebra-galho do afogador". Complicado? Bem, nem tanto. Difícil mesmo é adivinhar que “junta da igrejinha” chama-se “junta da tampa do mancal traseiro do motor”...

Lembranças do almoxarifado - parte 1

26 de novembro de 1996. Hoje faz um mês que fui contratado para trabalhar aqui no Almoxarifado Agrícola da Usina Alta Mogiana. Como almoxarife, minha função é servir os mecânicos da oficina e todos aqueles que apareçam no balcão com uma requisição de material. Aqui neste setor ficam armazenadas peças para caminhões, carros, tratores, reboques canavieiros, tratores, colhedeiras de cana, máquinas de esteira, bombas de veneno, grades niveladoras. Também armazenamos material de limpeza, tintas, mangueiras e uma grande variedade de materiais. É tanta mercadoria que o espaço acaba sendo pequeno demais... O ambiente físico aqui não é dos mais aconchegantes. O telhado é constituído de folhas do tipo Eternit, o que torna o ambiente aqui dentro um verdadeiro forno. As paredes são feitas de placa de madeira prensada, a que eles chamam de “folhas de madeirite”. O chão, por sua vez, é feito de concreto bruto, mas a quantidade de poeira depositada sobre ele é tão grande que nem mesmo o “seu Boné”, nosso faxineiro, consegue eliminá-la com a água que sai de seu regador verde. A poeira que se levanta do chão quando passamos acaba se depositando sobre as peças que se encontram sobre as prateleiras, tornando o ambiente nada propício para quem sofre de rinite alérgica, como eu. Aliás, tive que esconder este meu pequeno problema de saúde do médico que me examinou para que eu fosse admitido; caso contrário não seria contratado. Sim, eu preciso muito deste emprego para pagar o curso de graduação em Química. Desde que assumi a função aqui no almoxarifado agrícola, minha rotina tem sido bastante cansativa. Acordo às 6h, entro no ônibus às 6h30min e só desço do mesmo ônibus às 17h30min. Desde o momento em que desço do ônibus da empresa até o momento em que entro no ônibus da universidade, são decorridos aproximadamente 30min. Este é o tempo que tenho para tomar banho e alimentar-me. Sim, é um tempo curto demais para que eu consiga esvaziar um prato de comida. Ao invés de tentar e fracassar, e ainda correr o risco de ter uma congestão, prefiro comer uma torrada com “catchup” ou um pão com presunto e queijo. Quando chego em casa de volta da universidade, o relógio de pêndulo na parede da sala, herança de meus bisavós, bate 23h40min. Já é tarde. Estou muito cansado. Mas não posso dormir. Tenho que estudar. Enquanto tomo um copo de leite com café e açúcar, escovo os dentes e visto o pijama, passam-se 20 min. Assim que abro o caderno, o relógio dá doze badaladas da meia noite. “Agora eu vou trabalhar para mim”, penso. Mas cadê o ânimo? Tento ler o texto mas está difícil. Os olhos acabam se fechando antes do final de cada frase. Procuro, então, reescrever o que estou lendo. Eis que me flagro escrevendo há quase 3 min no mesmo lugar... A ponta da caneta já está quase rabiscando a mesa, do outro lado da folha de papel. Levanto-me. Dirijo-me ao banheiro; molho as mãos com a água gelada da torneira e fricciono as mãos contra o rosto, na tentativa de espantar o sono. Já se passaram quase 30min e eu não consegui sequer começar a estudar. Quando retorno à mesa, o sono se vai. O relógio da cozinha são 0h30min. Agora sim! Lembro-me, então, de cada palavra que meu pai me disse há um mês atrás, quando consegui este emprego. “Filho, até hoje você só estudou. Sempre viveu para estudar e sempre teve boas notas. Mas agora é diferente. Agora você vai trabalhar e estudar”. E colocando as mãos sobre meus ombros, ele pronunciou o estímulo que eu precisava para passar as madrugadas estudando: “Agora sim eu quero ver se você é mesmo “macho” pra manter essas notas!” Respiro fundo. Esboço um sorriso de canto de boca. “Pode deixar, papai”, penso. Sim, esta madrugada vai ser curta demais para mim...

Minhas lembranças do colégio - parte 4

Janeiro de 1987. Tenho 11 anos. Estou em frente à casa do Adriano, a quem apelidamos de “Saracura”. Ele é mais ou menos do meu tamanho, embora tenha nascido uns dois ou três anos antes de mim. O que chama a atenção no Saracura é o cabelo, cortado na forma de tijela-e-franja, e os dentes dele. Ele usa aparelho do tipo “freio de burro”. Mas o que mais admiro no Saracura é a bicicleta dele. É uma Triunfo T-47 Tigre, nas cores branco e vermelho. O banco é longo, podendo caber perfeitamente duas pessoas bem acomodadas. O peso destas pessoas pode ser aliviado pelos amortecedores traseiros. O freio (privilégio da roda traseira) é a disco, parecido com o das motos. Sempre notei o quanto ele gosta de sua Triunfo e do quanto ele se diverte saltando em cima do banco e sentindo o impacto da queda sendo devolvido pelos amortecedores. Foi justamente por isso que pedi de presente para o papai uma bicicleta igualzinha, inclusive na cor! No dia em que ganhei a minha “Triunfo”, lembro-me de ter chegado da escola e ter ouvido a mamãe dizer-me que tinha uma surpresa para mim. Ao entrar no quarto, lá estava a tão desejada bicicleta! O papai, que deve ter ficado escondido para ver minha reação, apareceu dizendo que já a tinha polido com cera Grand Prix. Como eu não sabia andar de bicicleta, o papai teve que comprá-la já devidamente equipada com as rodinhas. Contudo, eu nem me preocupava se ia aprender ou não. Eu estava preocupado mesmo era com os amortecedores dela! Entretanto, para meu desapontamento, notei que eles estavam duros. O papai explicou que estavam duros porque ainda não estavam amaciados. No auge da minha esperteza, pedi para o papai ficar pulando em cima do banco até que os amortecedores estivessem, finalmente, “amaciados”. Já no primeiro pulo que o papai dei reparei que a roda foi para um lado e o pára-lama foi para o outro. Pronto! Minha “Triunfo” estava desalinhada, provavelmente para o resto da vida! Pois bem. Neste momento, o Saracura está menosprezando a minha justamente por causa deste alinhamento. Obviamente, eu não estou gostando nada do que ele está dizendo. “Eu não troco a minha bicicleta pela sua. Não importa que é mais nova. Ela está toda desalinhada!”. Já no limite de minha paciência, monto em minha “Triunfo” e sigo em direção à rua São Paulo. Desço, então, em disparada. A rua termina em uma chácara, mas eu não pretendo ir até lá. Virarei à esquerda, em direção à rua Sergipe. Aos poucos vou notando que a bicicleta vai ganhando velocidade muito rápido, mas minha raiva me impede de pensar com lógica neste momento. “Vou virar a esquina sem brecar”, penso. Por poucos segundos eu desfruto da deliciosa sensação de sentir o vento batendo em meu rosto com força, projetando o topete para trás. Mas a sensação dura pouco e é chegada a hora de dobrar a esquina. Decido a não brecar, eu tento fazer a curva. Mas... não consigo. A bicicleta, já fora de controle, segue em direção à sarjeta. No momento em que a roda da frente encosta na sarjeta, sou projetado à frente, por cima do guidão, indo colidir com uma árvore de tamanho pequeno, ainda em formação. Caio em cima de sua copa e saio “catando cavacos”. Após deslizar pela calçada, deixando pedaços de pele espalhados pelo cimento, sinto-me mais assustado do que com raiva. O balanço da situação não é nada bom: os dois joelhos ralados e sangrando; queixo ralado; punho esquerdo ralado. Mas sabem o que está doendo mesmo? É ver minha “Triunfo” ali, tão nova, com o pára-lama dianteiro quebrado. Isto, sim, é doloroso! Não consigo conter as lágrimas...Eu quero a mamãe!!!
Locations of visitors to this page